Thursday, January 27, 2005
buraco feito por sacoleiros para contrabando de cigarros na ponte da amizade. foz do iguaçu - janeiro 2005
Wednesday, January 19, 2005
a noite
Amava só a noite. Amava só à noite. Disse adeus e foi ver o sol nascer. De lá longe, os raios pintaram de amarelo a terra preta. Voltou pra casa no meio das árvores. Tomou banho no rio e deitou na grama pra esperar de novo. Ela era bonita e tinha cabelos e olhos pretos. Boca vermelha e dentes brancos. Pele queimada de seca. Cor de areia de mar e couro jovem. Não enxergou nada nas nuvens. Ficou triste porque era pra vir algum recado. E não chovia.
Viu o moço menino do teatro. Achou bonito que ele tinha a cara pintada. Brincava de fazer voz e fazer careta. Pulava nas tábuas do circo ambulante. A irmã do menino chamava Rosa, mas era feia. E ele tinha uma rosa pra brincar. Mas não dava pra ninguém e não dava pra ela. Era rosa de cena, pra fazer teatro. Todo mundo vinha ver a flor do menino porque ele gritava. Fazia ela mais bonita porque a cara dele era pintada de branco. Branca de neve. E era dia.
O sol ficava grande no azul do céu aberto. O moço e a irmã faziam a cena e ela olhava como por uma janela. Mas não tinha janela. Era terra aberta e tinha os raios amarelos, sem nuvem nem sombra nem fruta ou coisa verde. O vestido dela era de cores. E nele ficavam presos pedaços de árvore e as coisas do chão, porque ela corria o dia inteiro pelo campo, na floresta e no rio.
Então o sol ia se esconder. Ia virar noite e algumas estrelas piscavam por trás do azul claro e faziam aparecer o preto de céu à noite. O moço e a irmã do teatro paravam de fazer cena dentro das madeiras. E ela ficava sozinha com o vestido de cores que sumiam naquele preto escuro. Esperava.
Ouviu o bater das asas. Sabia que era o amor. Desceu do lado dela o pássaro de ferro. Era ferro porque tinha sangue de homem feito. Sabia ela. Mais um pouco e ele perdia as penas e ganhava pernas e braços e cara de menino homem. Tinha olhos e boca pra amar ela e mãos pra agarrar ela e o vestido de cores desaparecidas.
Ficavam juntos na árvore até amanhecer o dia. Ele não falava muito porque tinha que ser passarinho, tinha que voar. Mas beijava muito e fazia muito carinho, porque era homem feito pra isso. Só ela acreditou nele, porque ela fugiu de outro amor pra tirar dele o machucado que fazia ele se perder no deserto. Passarinho não pode ficar no chão, nem no quente da areia. Tem que voar perto das estrelas pra ficar fresco. E ela fugiu pra ele.
Então era o amor dela que voava todo dia pelo céu perto do sol. E à noite aparecia pra fazer carinho e levar pra copa das árvores pra beber orvalho e dar beijo de homem com jeito de pássaro. E ela gostava de ficar nas asas dele. Flutuava no amor só dele, que era leve que nem o passarinho e bonito que nem a rosa do menino. Amava só a noite. Amava só à noite.
Viu o moço menino do teatro. Achou bonito que ele tinha a cara pintada. Brincava de fazer voz e fazer careta. Pulava nas tábuas do circo ambulante. A irmã do menino chamava Rosa, mas era feia. E ele tinha uma rosa pra brincar. Mas não dava pra ninguém e não dava pra ela. Era rosa de cena, pra fazer teatro. Todo mundo vinha ver a flor do menino porque ele gritava. Fazia ela mais bonita porque a cara dele era pintada de branco. Branca de neve. E era dia.
O sol ficava grande no azul do céu aberto. O moço e a irmã faziam a cena e ela olhava como por uma janela. Mas não tinha janela. Era terra aberta e tinha os raios amarelos, sem nuvem nem sombra nem fruta ou coisa verde. O vestido dela era de cores. E nele ficavam presos pedaços de árvore e as coisas do chão, porque ela corria o dia inteiro pelo campo, na floresta e no rio.
Então o sol ia se esconder. Ia virar noite e algumas estrelas piscavam por trás do azul claro e faziam aparecer o preto de céu à noite. O moço e a irmã do teatro paravam de fazer cena dentro das madeiras. E ela ficava sozinha com o vestido de cores que sumiam naquele preto escuro. Esperava.
Ouviu o bater das asas. Sabia que era o amor. Desceu do lado dela o pássaro de ferro. Era ferro porque tinha sangue de homem feito. Sabia ela. Mais um pouco e ele perdia as penas e ganhava pernas e braços e cara de menino homem. Tinha olhos e boca pra amar ela e mãos pra agarrar ela e o vestido de cores desaparecidas.
Ficavam juntos na árvore até amanhecer o dia. Ele não falava muito porque tinha que ser passarinho, tinha que voar. Mas beijava muito e fazia muito carinho, porque era homem feito pra isso. Só ela acreditou nele, porque ela fugiu de outro amor pra tirar dele o machucado que fazia ele se perder no deserto. Passarinho não pode ficar no chão, nem no quente da areia. Tem que voar perto das estrelas pra ficar fresco. E ela fugiu pra ele.
Então era o amor dela que voava todo dia pelo céu perto do sol. E à noite aparecia pra fazer carinho e levar pra copa das árvores pra beber orvalho e dar beijo de homem com jeito de pássaro. E ela gostava de ficar nas asas dele. Flutuava no amor só dele, que era leve que nem o passarinho e bonito que nem a rosa do menino. Amava só a noite. Amava só à noite.
Monday, January 17, 2005
le déclin de l'empire américain
Pierre: "Tu rêve peut-être d'écrire un livre important. Moi je sais que je ne serais jamais Arnold Toynbee ni Fernand Braudel. Tout ce qui me reste c'est le sexe, ou l'amour. On fait jamais vraiment la différence."
Dominique: "À la limite, Karl Marx était un allemand bourgeois qui baisait les bonnes dans la cave en cachant de sa femme. Moi je me demande jusqu'à quel point ses théories viennent de sa culpabilité. La même chose pour Freud, à moitié homosexuel incapable de baiser sa femme après 40 ans, excité à mort par ses patientes. Ses querelles avec Jung, au fond, c'est des histoires de femmes, des histoires de cul."
Pierre: "Il faut avoir assez bonne opinion de soi-même pour se réproduire. Moi je ne m'aime pas tellement. Je ne suis pas optimiste. Les intellectuels ne font rarement des très bons parents."
Dominique: "Tous les matins, je me lève en rage. Contre n'importe quoi: tout, rien. J'arrive jamais à me calmer avant ma deuxième tasse de café."
... do filme 'le déclin de l'empire américain' de denys arcand
momentos num café
O café tinha oito mesas. As mais disputadas eram as três mais perto da janela. Havia duas no meio e mais três ao longo da parede onde ficavam expostas algumas fotografias e muitos livros em prateleiras.
Geralmente tocava jazz. Hoje não é diferente. Na vitrola, Billie Holiday canta ‘Strange Fruit’. São 16 horas e 31 minutos. Chove e o túnel do Anhangabaú, próximo dali, está interditado por risco de inundação. Os trens da linha vermelha pararam de circular e agora também os da linha azul. Trovoadas e um pé d’água no Largo de São Bento. Todos procuram abrigo. Ambulantes já fazem liquidação de guarda-chuvas. As bancas de jornal parecem flutuar. Helicópteros sobrevoam para dar notícias de trânsito.
Na terceira mesa à esquerda, próximo à janela, está um velho. Ele está na página 504 de um livro que lê há dois anos. O mesmo livro empoeirado. Usa como marcador de página um laço que a neta usava pra prender o cabelo quando ela tinha cabelos compridos há dois anos.
Na mesa em frente, uma mulher de pouco mais de 30 anos briga com a bateria do celular que insiste em acabar. Fuma um cigarro atrás do outro. Consegue fazer uma ligação. A redação diz pra ela continuar por ali e entrar ao vivo com o decreto da prefeita. Não dá, não tem bateria. Bronca de chefe. Raiva. Mais cigarro.
Atrás dela, também próximo à janela, sentava um casal. Ela diz que não pode. Ele insiste. Estão juntos há três anos. Ela não quer. Ele diz que é impossível. Ela diz que não consegue. Ele diz que eles têm que tentar. Ela diz que não vai ser fácil. Ele diz que supera as dificuldades. Ela diz que já tentaram e foi um fracasso. Ele diz que não agüenta mais. Ela chora. Ele diz que não adianta. Ela pede mais tempo. Ele diz que já deu todo o tempo. Não dá. Decidem romper, mas a chuva é forte lá fora.
Estão vazias as mesas do meio. Uma tem uma pilha de revistas de decoração, amassadas de tão folheadas e sujas com farelos de bolo. Na outra, cinzas transbordam de um pires e uma flor murcha gruda nas paredes internas de um vaso transparente.
Um rapaz se debruça sobre a mesa mais ao fundo da fileira perto da parede. Tirou os óculos, que só precisava para enxergar o que estava longe, e sorriu sozinho com uma xícara de café quase frio. Lembrou de alguém que gostava de café frio. Como é que pode? Sorriu de novo pra chuva lá fora. Aquele alguém detesta dias chuvosos. Como é que pode? Escrevia coisas inúteis num caderno e as primeiras frases de uma grande história de amor num guardanapo. Limpou a boca e esqueceu.
Na mesa em frente, olhando pra ele, estava uma estudante de arquitetura. Tinha um esquadro, réguas e canetas de ponta fina. Parecia desenhar algum prédio. Na verdade era uma casa com paredes de vidro. Mordia uma das canetas e prendeu o cabelo num coque. Era a casa perfeita pra se apaixonar. Nunca teria filhos.
Ninguém sentava perto da porta. Atrás do balcão, exatamente às 16 horas e 31 minutos, seu Adamastor sofria um infarto fulminante.
Geralmente tocava jazz. Hoje não é diferente. Na vitrola, Billie Holiday canta ‘Strange Fruit’. São 16 horas e 31 minutos. Chove e o túnel do Anhangabaú, próximo dali, está interditado por risco de inundação. Os trens da linha vermelha pararam de circular e agora também os da linha azul. Trovoadas e um pé d’água no Largo de São Bento. Todos procuram abrigo. Ambulantes já fazem liquidação de guarda-chuvas. As bancas de jornal parecem flutuar. Helicópteros sobrevoam para dar notícias de trânsito.
Na terceira mesa à esquerda, próximo à janela, está um velho. Ele está na página 504 de um livro que lê há dois anos. O mesmo livro empoeirado. Usa como marcador de página um laço que a neta usava pra prender o cabelo quando ela tinha cabelos compridos há dois anos.
Na mesa em frente, uma mulher de pouco mais de 30 anos briga com a bateria do celular que insiste em acabar. Fuma um cigarro atrás do outro. Consegue fazer uma ligação. A redação diz pra ela continuar por ali e entrar ao vivo com o decreto da prefeita. Não dá, não tem bateria. Bronca de chefe. Raiva. Mais cigarro.
Atrás dela, também próximo à janela, sentava um casal. Ela diz que não pode. Ele insiste. Estão juntos há três anos. Ela não quer. Ele diz que é impossível. Ela diz que não consegue. Ele diz que eles têm que tentar. Ela diz que não vai ser fácil. Ele diz que supera as dificuldades. Ela diz que já tentaram e foi um fracasso. Ele diz que não agüenta mais. Ela chora. Ele diz que não adianta. Ela pede mais tempo. Ele diz que já deu todo o tempo. Não dá. Decidem romper, mas a chuva é forte lá fora.
Estão vazias as mesas do meio. Uma tem uma pilha de revistas de decoração, amassadas de tão folheadas e sujas com farelos de bolo. Na outra, cinzas transbordam de um pires e uma flor murcha gruda nas paredes internas de um vaso transparente.
Um rapaz se debruça sobre a mesa mais ao fundo da fileira perto da parede. Tirou os óculos, que só precisava para enxergar o que estava longe, e sorriu sozinho com uma xícara de café quase frio. Lembrou de alguém que gostava de café frio. Como é que pode? Sorriu de novo pra chuva lá fora. Aquele alguém detesta dias chuvosos. Como é que pode? Escrevia coisas inúteis num caderno e as primeiras frases de uma grande história de amor num guardanapo. Limpou a boca e esqueceu.
Na mesa em frente, olhando pra ele, estava uma estudante de arquitetura. Tinha um esquadro, réguas e canetas de ponta fina. Parecia desenhar algum prédio. Na verdade era uma casa com paredes de vidro. Mordia uma das canetas e prendeu o cabelo num coque. Era a casa perfeita pra se apaixonar. Nunca teria filhos.
Ninguém sentava perto da porta. Atrás do balcão, exatamente às 16 horas e 31 minutos, seu Adamastor sofria um infarto fulminante.
Saturday, January 15, 2005
as rosas
Começou com um capricho dele. Queria sempre sobre a mesa de trabalho uma flor. Veio a primeira e ficou linda em cima da mesa de madeira escura. Deu fôlego àquele ambiente fechado. Parecia até que o ar ficou mais leve lá dentro.
Depois que a primeira rosa morreu, precisou de outra pra que tudo voltasse ao normal. Pra que não morresse a energia do lugar onde escrevia. Então comprou mais uma. A outra foi pro lixo, mesmo tendo permanecido no vaso uns dias depois de morta. A nova durou menos porque fez muito calor naquela semana.
Então comprou duas, que era pra garantir que pelo menos uma estaria em boas condições durante toda a semana. Foi viajar. Como ia pra perto do mar, acabou esquecendo as flores no quarto escuro. Voltou e elas continuavam vivas, brilhantes. Ficou maravilhado. Não era possível. Fazia semanas que ninguém pusera os pés no apartamento. Mas as pétalas não perderam o fulgor daquele vermelho. Nem a água tinha secado. Voltou ao trabalho.
Semanas depois as duas rosas continuavam intactas, como se fossem de plástico. Cheirava-as de vez em quando. Eram de verdade. Tinham cheiro de rosa e eram muito delicadas. Sem querer rasgou uma das pétalas. Era de verdade mesmo. A pétala rasgada ficou esquecida sobre a mesa.
No mogno escuro da escrivaninha, foi criando raízes. Aquela uma pétala fincou laços de verde por toda parte. No dia seguinte, trepadeiras cobriam todas as paredes do quarto e delas iam nascendo as mais belas rosas. Eram enormes, vermelhas, muito vermelhas. Entraram no armário, se misturaram às camisas dele. Se espalharam pelo chão.
O problema eram os espinhos. Cansou de machucar os pés ao acordar de manhã e sair andando pelas roseiras no assoalho. Acabou criando o hábito de calçar sempre umas sandálias com sola de borracha, pra não arranhar os pés nem destruir as rosas.
Não demorou muito até que as flores chegassem ao banheiro. Gostavam da umidade e cresciam com mais rapidez pelos azulejos. Brotavam de todos os lados. Era difícil até enxergar o rosto no espelho, agora coberto de raízes e pétalas. Até o ralo abrigava rosas.
De fato, tinham alterado o clima. O apartamento viu de perto a precipitação. Chovia em alguns cômodos sempre no fim da tarde. A água escorria pelas paredes e alagava o chão debaixo das raízes. Mas logo tudo era absorvido. As pétalas ficavam molhadas. Pareciam chorar, mas não tinha motivo pra tristeza. Ou era suor, o calor era insuportável.
Percebeu que ele já não precisava tomar banho debaixo do chuveiro. O orvalho das rosas caia aos baldes, estava sempre molhado. Não dava mais pra se secar. Também passou a andar nu pelo apartamento. Não precisava de roupas que se molhavam e grudavam no corpo. Quase pegou uma pneumonia quando quis resistir.
Chegava da rua, abria a porta e já calçava as sandálias com sola de borracha. Tirava toda a roupa e ia pro quarto, onde havia mais rosas, mais umidade e mais raízes. Num dia que a fome apertou, decidiu que ia comer uma delas. Não queria estragar nenhuma, eram muito bonitas. Pegou a mais feia e enfiou na boca. Mordeu com receio e abriu um sorriso de surpresa. Escorreu pelos lábios o sangue vermelho das pétalas.
Adorou o gosto. Comeu mais uma e depois outra. Quis experimentar o caule. Teve que ter muito cuidado com os espinhos, mas acabava sempre cortando a boca, a língua. Mesmo assim, insistia. Primeiro as pétalas, que rasgava com os dentes da frente. Com os caninos segurava a raiz no lugar e ia puxando o caule com os molares. Acabou que sentia prazer com os pequenos cortes que os espinhos faziam nas paredes e no céu da boca.
Tamanha foi a paixão pelas plantas que ele quase não saía de casa. Já não se preocupava em justificar para os vizinhos do andar as raízes que saiam pelas janelas da cozinha e da lavanderia. Dormia e comia no quarto as flores que não davam trégua. Quando mastigava uma parecia brotar outra. Tinham tanta força que algumas paredes tinham rachaduras por onde saíam mais pétalas e raízes. O assoalho já estava irreconhecível.
Viu que debaixo da madeira havia muita terra e o teto escondia nuvens por trás das manchas de infiltração. As rosas se irrigavam com o suor, o orvalho e toda a água do corpo dele e do encanamento do prédio. O síndico já recebia reclamações de falta d’água e rachaduras nas garagens e em alguns pilares de sustentação.
As folhas, raízes e pétalas avançavam cômodo a cômodo, parede a parede sem fazer ruído. As chuvas internas caíam leves, sem trovoadas. Dava pra notar apenas umas oscilações na intensidade das luzes. Com as raízes se mesclando ao circuito elétrico, as flores aproveitavam a energia das lâmpadas pra crescer mais rápido. Às vezes, pestanejavam alguns lustres e parecia o prédio se espreguiçar.
As infiltrações pioraram. Estava próxima a estação das chuvas e as rosas, mesmo ligadas à energia dos quartos, obedeciam ao calendário terrestre. Chovia muito. Alguns cômodos estavam sempre alagados e algumas paredes tinham pequenas nascentes. As panes no circuito elétrico também ficaram mais freqüentes. O prédio chegou a ficar sem luz por uma semana.
Quando nasceu uma flor um pouco maior, do tamanho de um televisor, as paredes estralaram e a luz voltou. Foi como o desenroscar dos ossos da coluna dele. Dormia tão como pedra que acordou não sabia quanto tempo depois de fechar os olhos. Viu que as flores continuavam se multiplicando e sentia muita fome.
Comeu a maior de todas as elas. Mordeu cada pétala, bebeu todo o suco e toda a seiva dos caules. Se cortou muito com os espinhos. Percebeu só depois de comer que estava sangrando muito, que o branco dos dentes já nem aparecia, nem o das mãos pálidas. Sangrava demais. Esfregou a cara em outras pétalas molhadas pra se limpar. Elas ficaram mais vermelhas com o sangue e ele voltara à palidez de sempre. Mas gotejava o sangue vez ou outra. Choveu e a água da tempestade ajudou a dar um banho nele.
Caiu no sono encharcado, mole. As veias se tornaram mais visíveis sob a pele. Brilhavam esverdeadas, muito verde. Um sorriso estampou a cara dele, agora de lábios azulados. De frio, foi se encolhendo nu entre as raízes.
Depois que a primeira rosa morreu, precisou de outra pra que tudo voltasse ao normal. Pra que não morresse a energia do lugar onde escrevia. Então comprou mais uma. A outra foi pro lixo, mesmo tendo permanecido no vaso uns dias depois de morta. A nova durou menos porque fez muito calor naquela semana.
Então comprou duas, que era pra garantir que pelo menos uma estaria em boas condições durante toda a semana. Foi viajar. Como ia pra perto do mar, acabou esquecendo as flores no quarto escuro. Voltou e elas continuavam vivas, brilhantes. Ficou maravilhado. Não era possível. Fazia semanas que ninguém pusera os pés no apartamento. Mas as pétalas não perderam o fulgor daquele vermelho. Nem a água tinha secado. Voltou ao trabalho.
Semanas depois as duas rosas continuavam intactas, como se fossem de plástico. Cheirava-as de vez em quando. Eram de verdade. Tinham cheiro de rosa e eram muito delicadas. Sem querer rasgou uma das pétalas. Era de verdade mesmo. A pétala rasgada ficou esquecida sobre a mesa.
No mogno escuro da escrivaninha, foi criando raízes. Aquela uma pétala fincou laços de verde por toda parte. No dia seguinte, trepadeiras cobriam todas as paredes do quarto e delas iam nascendo as mais belas rosas. Eram enormes, vermelhas, muito vermelhas. Entraram no armário, se misturaram às camisas dele. Se espalharam pelo chão.
O problema eram os espinhos. Cansou de machucar os pés ao acordar de manhã e sair andando pelas roseiras no assoalho. Acabou criando o hábito de calçar sempre umas sandálias com sola de borracha, pra não arranhar os pés nem destruir as rosas.
Não demorou muito até que as flores chegassem ao banheiro. Gostavam da umidade e cresciam com mais rapidez pelos azulejos. Brotavam de todos os lados. Era difícil até enxergar o rosto no espelho, agora coberto de raízes e pétalas. Até o ralo abrigava rosas.
De fato, tinham alterado o clima. O apartamento viu de perto a precipitação. Chovia em alguns cômodos sempre no fim da tarde. A água escorria pelas paredes e alagava o chão debaixo das raízes. Mas logo tudo era absorvido. As pétalas ficavam molhadas. Pareciam chorar, mas não tinha motivo pra tristeza. Ou era suor, o calor era insuportável.
Percebeu que ele já não precisava tomar banho debaixo do chuveiro. O orvalho das rosas caia aos baldes, estava sempre molhado. Não dava mais pra se secar. Também passou a andar nu pelo apartamento. Não precisava de roupas que se molhavam e grudavam no corpo. Quase pegou uma pneumonia quando quis resistir.
Chegava da rua, abria a porta e já calçava as sandálias com sola de borracha. Tirava toda a roupa e ia pro quarto, onde havia mais rosas, mais umidade e mais raízes. Num dia que a fome apertou, decidiu que ia comer uma delas. Não queria estragar nenhuma, eram muito bonitas. Pegou a mais feia e enfiou na boca. Mordeu com receio e abriu um sorriso de surpresa. Escorreu pelos lábios o sangue vermelho das pétalas.
Adorou o gosto. Comeu mais uma e depois outra. Quis experimentar o caule. Teve que ter muito cuidado com os espinhos, mas acabava sempre cortando a boca, a língua. Mesmo assim, insistia. Primeiro as pétalas, que rasgava com os dentes da frente. Com os caninos segurava a raiz no lugar e ia puxando o caule com os molares. Acabou que sentia prazer com os pequenos cortes que os espinhos faziam nas paredes e no céu da boca.
Tamanha foi a paixão pelas plantas que ele quase não saía de casa. Já não se preocupava em justificar para os vizinhos do andar as raízes que saiam pelas janelas da cozinha e da lavanderia. Dormia e comia no quarto as flores que não davam trégua. Quando mastigava uma parecia brotar outra. Tinham tanta força que algumas paredes tinham rachaduras por onde saíam mais pétalas e raízes. O assoalho já estava irreconhecível.
Viu que debaixo da madeira havia muita terra e o teto escondia nuvens por trás das manchas de infiltração. As rosas se irrigavam com o suor, o orvalho e toda a água do corpo dele e do encanamento do prédio. O síndico já recebia reclamações de falta d’água e rachaduras nas garagens e em alguns pilares de sustentação.
As folhas, raízes e pétalas avançavam cômodo a cômodo, parede a parede sem fazer ruído. As chuvas internas caíam leves, sem trovoadas. Dava pra notar apenas umas oscilações na intensidade das luzes. Com as raízes se mesclando ao circuito elétrico, as flores aproveitavam a energia das lâmpadas pra crescer mais rápido. Às vezes, pestanejavam alguns lustres e parecia o prédio se espreguiçar.
As infiltrações pioraram. Estava próxima a estação das chuvas e as rosas, mesmo ligadas à energia dos quartos, obedeciam ao calendário terrestre. Chovia muito. Alguns cômodos estavam sempre alagados e algumas paredes tinham pequenas nascentes. As panes no circuito elétrico também ficaram mais freqüentes. O prédio chegou a ficar sem luz por uma semana.
Quando nasceu uma flor um pouco maior, do tamanho de um televisor, as paredes estralaram e a luz voltou. Foi como o desenroscar dos ossos da coluna dele. Dormia tão como pedra que acordou não sabia quanto tempo depois de fechar os olhos. Viu que as flores continuavam se multiplicando e sentia muita fome.
Comeu a maior de todas as elas. Mordeu cada pétala, bebeu todo o suco e toda a seiva dos caules. Se cortou muito com os espinhos. Percebeu só depois de comer que estava sangrando muito, que o branco dos dentes já nem aparecia, nem o das mãos pálidas. Sangrava demais. Esfregou a cara em outras pétalas molhadas pra se limpar. Elas ficaram mais vermelhas com o sangue e ele voltara à palidez de sempre. Mas gotejava o sangue vez ou outra. Choveu e a água da tempestade ajudou a dar um banho nele.
Caiu no sono encharcado, mole. As veias se tornaram mais visíveis sob a pele. Brilhavam esverdeadas, muito verde. Um sorriso estampou a cara dele, agora de lábios azulados. De frio, foi se encolhendo nu entre as raízes.
Friday, January 07, 2005
casa-grande & senzala
o que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação. p. 33
a força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais. donos das terras. donos dos homens. donos das mulheres. suas casas representavam esse imenso poderio feudal. "feias e fortes". paredes grossas. alicerces profundos. óleo de baleia. refere uma tradição nortista que um senhor de engenho mais ansioso de perpetuidade não se conteve: mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces da casa. o suor e às vezes o sangue dos negros foi o óleo que mais do que o de baleia ajudou a dar aos alicerces das casas-grandes sua consistência quase de fortaleza. p. 38
creio que não há no brasil um só diário escrito por mulher. nossas avós, tantas delas analfabetas, mesmo quando baronesas e viscondessas, satisfaziam-se em contar os segredos ao padre confessor e à mucama de estimação; e a sua tagarelice dissolveu-se quase toda nas conversas com as pretas boceteiras, nas tardes de chuva ou nos meios-dias quentes, morosos. debalde se procuraria entre nós um diário de dona de casa cheio de gossip no gênero dos ingleses e dos norte-americanos dos tempos coloniais. p. 45
junte-se às vantagens, já apontadas, do português do século xv sobre os povos colonizadores seus contemporâneos, a da sua moral sexual, moçárabe, a católica amaciada pelo contato com a maometana, e mais frouxa, mais relassa que a dos homens do norte. nem era entre eles a religião o mesmo duro e rígido sistema que entre os povos do norte reformado e da própria castela dramaticamente católica, mas uma liturgia antes social que religiosa, um doce cristianismo lírico, com muitas reminiscências fálicas e animistas das religiões pagãs: os santos e os anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa para se divertirem com o povo; os bois entrando pelas igrejas para ser benzidos pelos padres; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o menino-deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de são gonçalo do amarante; os maridos cismados de infidelidade conjugal indo interrogar os "rochedos dos cornudos" e as moças casadouras os "rochedos do casamento"; nossa senhora do ó adorada na imagem de uma mulher prenhe. p. 84
através de certas épocas coloniais observou-se a prática de ir um frade a bordo de todo navio que chegasse a porto brasileiro, a fim de examinar a consciência, a fé, a religião do adventício. o que barrava então o imigrante era a heterodoxia; a mancha de herege na alma e não a mongólica no corpo. do que se fazia questão era da saúde religiosa: a sífilis, a bouba, a bexiga, a lepra entraram livremente trazidas por europeus e negros de várias procedências. p. 91
"la situation fonctionnalle de cette population peut se résumer d'un mot: le brésil n'a pas de peuple", escreveu [louis] couty. palavras que joaquim nabuco repetiria dois anos depois do cientista francês: "são milhões", escrevia nabuco em 1883, "que se acham nessa condição intermédia, que não é o escravo, mas também não é o cidadão..." p. 98
costuma-se dizer que a civilização e a sifilização andam juntas: o brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. os primeiros europeus aqui chegados desapareceram na massa indígena quase sem deixar sobre ela outro traço europeizante além das manchas de mestiçagem e de sífilis. não civilizaram: há, entretanto, indícios de terem sifilizado a população aborígine que os absorveu. p. 110
mesmo em sinceras expressões individuais - não de todo invulgares nesta espécie de rússia americana que é o brasil - de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade pessoal, sente-se o laivo ou o resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto do sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se. p. 114
... do livro 'casa-grande & senzala' de gilberto freyre
a força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais. donos das terras. donos dos homens. donos das mulheres. suas casas representavam esse imenso poderio feudal. "feias e fortes". paredes grossas. alicerces profundos. óleo de baleia. refere uma tradição nortista que um senhor de engenho mais ansioso de perpetuidade não se conteve: mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces da casa. o suor e às vezes o sangue dos negros foi o óleo que mais do que o de baleia ajudou a dar aos alicerces das casas-grandes sua consistência quase de fortaleza. p. 38
creio que não há no brasil um só diário escrito por mulher. nossas avós, tantas delas analfabetas, mesmo quando baronesas e viscondessas, satisfaziam-se em contar os segredos ao padre confessor e à mucama de estimação; e a sua tagarelice dissolveu-se quase toda nas conversas com as pretas boceteiras, nas tardes de chuva ou nos meios-dias quentes, morosos. debalde se procuraria entre nós um diário de dona de casa cheio de gossip no gênero dos ingleses e dos norte-americanos dos tempos coloniais. p. 45
junte-se às vantagens, já apontadas, do português do século xv sobre os povos colonizadores seus contemporâneos, a da sua moral sexual, moçárabe, a católica amaciada pelo contato com a maometana, e mais frouxa, mais relassa que a dos homens do norte. nem era entre eles a religião o mesmo duro e rígido sistema que entre os povos do norte reformado e da própria castela dramaticamente católica, mas uma liturgia antes social que religiosa, um doce cristianismo lírico, com muitas reminiscências fálicas e animistas das religiões pagãs: os santos e os anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa para se divertirem com o povo; os bois entrando pelas igrejas para ser benzidos pelos padres; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o menino-deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de são gonçalo do amarante; os maridos cismados de infidelidade conjugal indo interrogar os "rochedos dos cornudos" e as moças casadouras os "rochedos do casamento"; nossa senhora do ó adorada na imagem de uma mulher prenhe. p. 84
através de certas épocas coloniais observou-se a prática de ir um frade a bordo de todo navio que chegasse a porto brasileiro, a fim de examinar a consciência, a fé, a religião do adventício. o que barrava então o imigrante era a heterodoxia; a mancha de herege na alma e não a mongólica no corpo. do que se fazia questão era da saúde religiosa: a sífilis, a bouba, a bexiga, a lepra entraram livremente trazidas por europeus e negros de várias procedências. p. 91
"la situation fonctionnalle de cette population peut se résumer d'un mot: le brésil n'a pas de peuple", escreveu [louis] couty. palavras que joaquim nabuco repetiria dois anos depois do cientista francês: "são milhões", escrevia nabuco em 1883, "que se acham nessa condição intermédia, que não é o escravo, mas também não é o cidadão..." p. 98
costuma-se dizer que a civilização e a sifilização andam juntas: o brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. os primeiros europeus aqui chegados desapareceram na massa indígena quase sem deixar sobre ela outro traço europeizante além das manchas de mestiçagem e de sífilis. não civilizaram: há, entretanto, indícios de terem sifilizado a população aborígine que os absorveu. p. 110
mesmo em sinceras expressões individuais - não de todo invulgares nesta espécie de rússia americana que é o brasil - de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade pessoal, sente-se o laivo ou o resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto do sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se. p. 114
... do livro 'casa-grande & senzala' de gilberto freyre
Tuesday, January 04, 2005
don quijote de la mancha
siempre, hermano, fui amiga de la igualdad, y no puedo ver entonos sin fundamentos. teresa me pusieron en el bautismo, nombre mondo y escueto, sin añadiduras ni cortapsias, ni arrequives de dones ni donas; cascajo se llamó mi padre; y a mí, por ser vuestra mujer, me llaman teresa panza, que a buena razón me habían de llamar teresa cascajo, pero allá van reyes do quieren leyes, y con este nombre me contento sin que me le pongan un don encima, que pese tanto, que no lo pueda llevar, y no quiero dar que decir a los que me vieren andar vestida a lo condesil o a lo de gobernadora, que luego dirán: "!mirad qué entonada va la pazpuerca!"
quiero decir que la conversación de vuestra merced ha sido el estiércol que sobre la estéril tierra de mi seco ingenio ha caído; la cultivación, el tiempo que ha que le sirvo y comunico; y con esto espero de dar frutos de mí que sean de bendición, tales, que no desdigan ni deslicen de los senderos de la buena crianza que vuesa merced ha hecho en el agostado entendimiento mío. p. 515
la poesía, señor hidalgo, a mi parecer, es como una doncella tierna y de poca edad y en todo estremo hermosa, a quien tienen cuidado de enriquecer, pulir y adornar otras muchas doncellas, que son todas las otras ciencias, y ella se ha de servir de todas, y todas se han de autorizar con ella. p. 542
teneos, señores, teneos, que no es razón toméis venganza de los agravios que el amor nos hace, y advertid que el amor y la guerra son una misma cosa, y así como en la guerra es cosa lícita y acostumbrada usar de ardides y estratagemas para vencer al enemigo, así en las contiendas y competencias amorosas se tienen por buenos los embustes y marañas que se hacen para conseguir el fin que se desea, como no sean en menoscabo y deshonra de la cosa amada. p. 580
... do livro 'don quijote de la mancha' de miguel de cervantes
quiero decir que la conversación de vuestra merced ha sido el estiércol que sobre la estéril tierra de mi seco ingenio ha caído; la cultivación, el tiempo que ha que le sirvo y comunico; y con esto espero de dar frutos de mí que sean de bendición, tales, que no desdigan ni deslicen de los senderos de la buena crianza que vuesa merced ha hecho en el agostado entendimiento mío. p. 515
la poesía, señor hidalgo, a mi parecer, es como una doncella tierna y de poca edad y en todo estremo hermosa, a quien tienen cuidado de enriquecer, pulir y adornar otras muchas doncellas, que son todas las otras ciencias, y ella se ha de servir de todas, y todas se han de autorizar con ella. p. 542
teneos, señores, teneos, que no es razón toméis venganza de los agravios que el amor nos hace, y advertid que el amor y la guerra son una misma cosa, y así como en la guerra es cosa lícita y acostumbrada usar de ardides y estratagemas para vencer al enemigo, así en las contiendas y competencias amorosas se tienen por buenos los embustes y marañas que se hacen para conseguir el fin que se desea, como no sean en menoscabo y deshonra de la cosa amada. p. 580
... do livro 'don quijote de la mancha' de miguel de cervantes