Saturday, January 15, 2005
as rosas
Começou com um capricho dele. Queria sempre sobre a mesa de trabalho uma flor. Veio a primeira e ficou linda em cima da mesa de madeira escura. Deu fôlego àquele ambiente fechado. Parecia até que o ar ficou mais leve lá dentro.
Depois que a primeira rosa morreu, precisou de outra pra que tudo voltasse ao normal. Pra que não morresse a energia do lugar onde escrevia. Então comprou mais uma. A outra foi pro lixo, mesmo tendo permanecido no vaso uns dias depois de morta. A nova durou menos porque fez muito calor naquela semana.
Então comprou duas, que era pra garantir que pelo menos uma estaria em boas condições durante toda a semana. Foi viajar. Como ia pra perto do mar, acabou esquecendo as flores no quarto escuro. Voltou e elas continuavam vivas, brilhantes. Ficou maravilhado. Não era possível. Fazia semanas que ninguém pusera os pés no apartamento. Mas as pétalas não perderam o fulgor daquele vermelho. Nem a água tinha secado. Voltou ao trabalho.
Semanas depois as duas rosas continuavam intactas, como se fossem de plástico. Cheirava-as de vez em quando. Eram de verdade. Tinham cheiro de rosa e eram muito delicadas. Sem querer rasgou uma das pétalas. Era de verdade mesmo. A pétala rasgada ficou esquecida sobre a mesa.
No mogno escuro da escrivaninha, foi criando raízes. Aquela uma pétala fincou laços de verde por toda parte. No dia seguinte, trepadeiras cobriam todas as paredes do quarto e delas iam nascendo as mais belas rosas. Eram enormes, vermelhas, muito vermelhas. Entraram no armário, se misturaram às camisas dele. Se espalharam pelo chão.
O problema eram os espinhos. Cansou de machucar os pés ao acordar de manhã e sair andando pelas roseiras no assoalho. Acabou criando o hábito de calçar sempre umas sandálias com sola de borracha, pra não arranhar os pés nem destruir as rosas.
Não demorou muito até que as flores chegassem ao banheiro. Gostavam da umidade e cresciam com mais rapidez pelos azulejos. Brotavam de todos os lados. Era difícil até enxergar o rosto no espelho, agora coberto de raízes e pétalas. Até o ralo abrigava rosas.
De fato, tinham alterado o clima. O apartamento viu de perto a precipitação. Chovia em alguns cômodos sempre no fim da tarde. A água escorria pelas paredes e alagava o chão debaixo das raízes. Mas logo tudo era absorvido. As pétalas ficavam molhadas. Pareciam chorar, mas não tinha motivo pra tristeza. Ou era suor, o calor era insuportável.
Percebeu que ele já não precisava tomar banho debaixo do chuveiro. O orvalho das rosas caia aos baldes, estava sempre molhado. Não dava mais pra se secar. Também passou a andar nu pelo apartamento. Não precisava de roupas que se molhavam e grudavam no corpo. Quase pegou uma pneumonia quando quis resistir.
Chegava da rua, abria a porta e já calçava as sandálias com sola de borracha. Tirava toda a roupa e ia pro quarto, onde havia mais rosas, mais umidade e mais raízes. Num dia que a fome apertou, decidiu que ia comer uma delas. Não queria estragar nenhuma, eram muito bonitas. Pegou a mais feia e enfiou na boca. Mordeu com receio e abriu um sorriso de surpresa. Escorreu pelos lábios o sangue vermelho das pétalas.
Adorou o gosto. Comeu mais uma e depois outra. Quis experimentar o caule. Teve que ter muito cuidado com os espinhos, mas acabava sempre cortando a boca, a língua. Mesmo assim, insistia. Primeiro as pétalas, que rasgava com os dentes da frente. Com os caninos segurava a raiz no lugar e ia puxando o caule com os molares. Acabou que sentia prazer com os pequenos cortes que os espinhos faziam nas paredes e no céu da boca.
Tamanha foi a paixão pelas plantas que ele quase não saía de casa. Já não se preocupava em justificar para os vizinhos do andar as raízes que saiam pelas janelas da cozinha e da lavanderia. Dormia e comia no quarto as flores que não davam trégua. Quando mastigava uma parecia brotar outra. Tinham tanta força que algumas paredes tinham rachaduras por onde saíam mais pétalas e raízes. O assoalho já estava irreconhecível.
Viu que debaixo da madeira havia muita terra e o teto escondia nuvens por trás das manchas de infiltração. As rosas se irrigavam com o suor, o orvalho e toda a água do corpo dele e do encanamento do prédio. O síndico já recebia reclamações de falta d’água e rachaduras nas garagens e em alguns pilares de sustentação.
As folhas, raízes e pétalas avançavam cômodo a cômodo, parede a parede sem fazer ruído. As chuvas internas caíam leves, sem trovoadas. Dava pra notar apenas umas oscilações na intensidade das luzes. Com as raízes se mesclando ao circuito elétrico, as flores aproveitavam a energia das lâmpadas pra crescer mais rápido. Às vezes, pestanejavam alguns lustres e parecia o prédio se espreguiçar.
As infiltrações pioraram. Estava próxima a estação das chuvas e as rosas, mesmo ligadas à energia dos quartos, obedeciam ao calendário terrestre. Chovia muito. Alguns cômodos estavam sempre alagados e algumas paredes tinham pequenas nascentes. As panes no circuito elétrico também ficaram mais freqüentes. O prédio chegou a ficar sem luz por uma semana.
Quando nasceu uma flor um pouco maior, do tamanho de um televisor, as paredes estralaram e a luz voltou. Foi como o desenroscar dos ossos da coluna dele. Dormia tão como pedra que acordou não sabia quanto tempo depois de fechar os olhos. Viu que as flores continuavam se multiplicando e sentia muita fome.
Comeu a maior de todas as elas. Mordeu cada pétala, bebeu todo o suco e toda a seiva dos caules. Se cortou muito com os espinhos. Percebeu só depois de comer que estava sangrando muito, que o branco dos dentes já nem aparecia, nem o das mãos pálidas. Sangrava demais. Esfregou a cara em outras pétalas molhadas pra se limpar. Elas ficaram mais vermelhas com o sangue e ele voltara à palidez de sempre. Mas gotejava o sangue vez ou outra. Choveu e a água da tempestade ajudou a dar um banho nele.
Caiu no sono encharcado, mole. As veias se tornaram mais visíveis sob a pele. Brilhavam esverdeadas, muito verde. Um sorriso estampou a cara dele, agora de lábios azulados. De frio, foi se encolhendo nu entre as raízes.
Depois que a primeira rosa morreu, precisou de outra pra que tudo voltasse ao normal. Pra que não morresse a energia do lugar onde escrevia. Então comprou mais uma. A outra foi pro lixo, mesmo tendo permanecido no vaso uns dias depois de morta. A nova durou menos porque fez muito calor naquela semana.
Então comprou duas, que era pra garantir que pelo menos uma estaria em boas condições durante toda a semana. Foi viajar. Como ia pra perto do mar, acabou esquecendo as flores no quarto escuro. Voltou e elas continuavam vivas, brilhantes. Ficou maravilhado. Não era possível. Fazia semanas que ninguém pusera os pés no apartamento. Mas as pétalas não perderam o fulgor daquele vermelho. Nem a água tinha secado. Voltou ao trabalho.
Semanas depois as duas rosas continuavam intactas, como se fossem de plástico. Cheirava-as de vez em quando. Eram de verdade. Tinham cheiro de rosa e eram muito delicadas. Sem querer rasgou uma das pétalas. Era de verdade mesmo. A pétala rasgada ficou esquecida sobre a mesa.
No mogno escuro da escrivaninha, foi criando raízes. Aquela uma pétala fincou laços de verde por toda parte. No dia seguinte, trepadeiras cobriam todas as paredes do quarto e delas iam nascendo as mais belas rosas. Eram enormes, vermelhas, muito vermelhas. Entraram no armário, se misturaram às camisas dele. Se espalharam pelo chão.
O problema eram os espinhos. Cansou de machucar os pés ao acordar de manhã e sair andando pelas roseiras no assoalho. Acabou criando o hábito de calçar sempre umas sandálias com sola de borracha, pra não arranhar os pés nem destruir as rosas.
Não demorou muito até que as flores chegassem ao banheiro. Gostavam da umidade e cresciam com mais rapidez pelos azulejos. Brotavam de todos os lados. Era difícil até enxergar o rosto no espelho, agora coberto de raízes e pétalas. Até o ralo abrigava rosas.
De fato, tinham alterado o clima. O apartamento viu de perto a precipitação. Chovia em alguns cômodos sempre no fim da tarde. A água escorria pelas paredes e alagava o chão debaixo das raízes. Mas logo tudo era absorvido. As pétalas ficavam molhadas. Pareciam chorar, mas não tinha motivo pra tristeza. Ou era suor, o calor era insuportável.
Percebeu que ele já não precisava tomar banho debaixo do chuveiro. O orvalho das rosas caia aos baldes, estava sempre molhado. Não dava mais pra se secar. Também passou a andar nu pelo apartamento. Não precisava de roupas que se molhavam e grudavam no corpo. Quase pegou uma pneumonia quando quis resistir.
Chegava da rua, abria a porta e já calçava as sandálias com sola de borracha. Tirava toda a roupa e ia pro quarto, onde havia mais rosas, mais umidade e mais raízes. Num dia que a fome apertou, decidiu que ia comer uma delas. Não queria estragar nenhuma, eram muito bonitas. Pegou a mais feia e enfiou na boca. Mordeu com receio e abriu um sorriso de surpresa. Escorreu pelos lábios o sangue vermelho das pétalas.
Adorou o gosto. Comeu mais uma e depois outra. Quis experimentar o caule. Teve que ter muito cuidado com os espinhos, mas acabava sempre cortando a boca, a língua. Mesmo assim, insistia. Primeiro as pétalas, que rasgava com os dentes da frente. Com os caninos segurava a raiz no lugar e ia puxando o caule com os molares. Acabou que sentia prazer com os pequenos cortes que os espinhos faziam nas paredes e no céu da boca.
Tamanha foi a paixão pelas plantas que ele quase não saía de casa. Já não se preocupava em justificar para os vizinhos do andar as raízes que saiam pelas janelas da cozinha e da lavanderia. Dormia e comia no quarto as flores que não davam trégua. Quando mastigava uma parecia brotar outra. Tinham tanta força que algumas paredes tinham rachaduras por onde saíam mais pétalas e raízes. O assoalho já estava irreconhecível.
Viu que debaixo da madeira havia muita terra e o teto escondia nuvens por trás das manchas de infiltração. As rosas se irrigavam com o suor, o orvalho e toda a água do corpo dele e do encanamento do prédio. O síndico já recebia reclamações de falta d’água e rachaduras nas garagens e em alguns pilares de sustentação.
As folhas, raízes e pétalas avançavam cômodo a cômodo, parede a parede sem fazer ruído. As chuvas internas caíam leves, sem trovoadas. Dava pra notar apenas umas oscilações na intensidade das luzes. Com as raízes se mesclando ao circuito elétrico, as flores aproveitavam a energia das lâmpadas pra crescer mais rápido. Às vezes, pestanejavam alguns lustres e parecia o prédio se espreguiçar.
As infiltrações pioraram. Estava próxima a estação das chuvas e as rosas, mesmo ligadas à energia dos quartos, obedeciam ao calendário terrestre. Chovia muito. Alguns cômodos estavam sempre alagados e algumas paredes tinham pequenas nascentes. As panes no circuito elétrico também ficaram mais freqüentes. O prédio chegou a ficar sem luz por uma semana.
Quando nasceu uma flor um pouco maior, do tamanho de um televisor, as paredes estralaram e a luz voltou. Foi como o desenroscar dos ossos da coluna dele. Dormia tão como pedra que acordou não sabia quanto tempo depois de fechar os olhos. Viu que as flores continuavam se multiplicando e sentia muita fome.
Comeu a maior de todas as elas. Mordeu cada pétala, bebeu todo o suco e toda a seiva dos caules. Se cortou muito com os espinhos. Percebeu só depois de comer que estava sangrando muito, que o branco dos dentes já nem aparecia, nem o das mãos pálidas. Sangrava demais. Esfregou a cara em outras pétalas molhadas pra se limpar. Elas ficaram mais vermelhas com o sangue e ele voltara à palidez de sempre. Mas gotejava o sangue vez ou outra. Choveu e a água da tempestade ajudou a dar um banho nele.
Caiu no sono encharcado, mole. As veias se tornaram mais visíveis sob a pele. Brilhavam esverdeadas, muito verde. Um sorriso estampou a cara dele, agora de lábios azulados. De frio, foi se encolhendo nu entre as raízes.