Monday, January 17, 2005

momentos num café

O café tinha oito mesas. As mais disputadas eram as três mais perto da janela. Havia duas no meio e mais três ao longo da parede onde ficavam expostas algumas fotografias e muitos livros em prateleiras.

Geralmente tocava jazz. Hoje não é diferente. Na vitrola, Billie Holiday canta ‘Strange Fruit’. São 16 horas e 31 minutos. Chove e o túnel do Anhangabaú, próximo dali, está interditado por risco de inundação. Os trens da linha vermelha pararam de circular e agora também os da linha azul. Trovoadas e um pé d’água no Largo de São Bento. Todos procuram abrigo. Ambulantes já fazem liquidação de guarda-chuvas. As bancas de jornal parecem flutuar. Helicópteros sobrevoam para dar notícias de trânsito.

Na terceira mesa à esquerda, próximo à janela, está um velho. Ele está na página 504 de um livro que lê há dois anos. O mesmo livro empoeirado. Usa como marcador de página um laço que a neta usava pra prender o cabelo quando ela tinha cabelos compridos há dois anos.

Na mesa em frente, uma mulher de pouco mais de 30 anos briga com a bateria do celular que insiste em acabar. Fuma um cigarro atrás do outro. Consegue fazer uma ligação. A redação diz pra ela continuar por ali e entrar ao vivo com o decreto da prefeita. Não dá, não tem bateria. Bronca de chefe. Raiva. Mais cigarro.

Atrás dela, também próximo à janela, sentava um casal. Ela diz que não pode. Ele insiste. Estão juntos há três anos. Ela não quer. Ele diz que é impossível. Ela diz que não consegue. Ele diz que eles têm que tentar. Ela diz que não vai ser fácil. Ele diz que supera as dificuldades. Ela diz que já tentaram e foi um fracasso. Ele diz que não agüenta mais. Ela chora. Ele diz que não adianta. Ela pede mais tempo. Ele diz que já deu todo o tempo. Não dá. Decidem romper, mas a chuva é forte lá fora.

Estão vazias as mesas do meio. Uma tem uma pilha de revistas de decoração, amassadas de tão folheadas e sujas com farelos de bolo. Na outra, cinzas transbordam de um pires e uma flor murcha gruda nas paredes internas de um vaso transparente.

Um rapaz se debruça sobre a mesa mais ao fundo da fileira perto da parede. Tirou os óculos, que só precisava para enxergar o que estava longe, e sorriu sozinho com uma xícara de café quase frio. Lembrou de alguém que gostava de café frio. Como é que pode? Sorriu de novo pra chuva lá fora. Aquele alguém detesta dias chuvosos. Como é que pode? Escrevia coisas inúteis num caderno e as primeiras frases de uma grande história de amor num guardanapo. Limpou a boca e esqueceu.

Na mesa em frente, olhando pra ele, estava uma estudante de arquitetura. Tinha um esquadro, réguas e canetas de ponta fina. Parecia desenhar algum prédio. Na verdade era uma casa com paredes de vidro. Mordia uma das canetas e prendeu o cabelo num coque. Era a casa perfeita pra se apaixonar. Nunca teria filhos.

Ninguém sentava perto da porta. Atrás do balcão, exatamente às 16 horas e 31 minutos, seu Adamastor sofria um infarto fulminante.

Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?