Friday, January 07, 2005

casa-grande & senzala

o que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação. p. 33

a força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais. donos das terras. donos dos homens. donos das mulheres. suas casas representavam esse imenso poderio feudal. "feias e fortes". paredes grossas. alicerces profundos. óleo de baleia. refere uma tradição nortista que um senhor de engenho mais ansioso de perpetuidade não se conteve: mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces da casa. o suor e às vezes o sangue dos negros foi o óleo que mais do que o de baleia ajudou a dar aos alicerces das casas-grandes sua consistência quase de fortaleza. p. 38

creio que não há no brasil um só diário escrito por mulher. nossas avós, tantas delas analfabetas, mesmo quando baronesas e viscondessas, satisfaziam-se em contar os segredos ao padre confessor e à mucama de estimação; e a sua tagarelice dissolveu-se quase toda nas conversas com as pretas boceteiras, nas tardes de chuva ou nos meios-dias quentes, morosos. debalde se procuraria entre nós um diário de dona de casa cheio de gossip no gênero dos ingleses e dos norte-americanos dos tempos coloniais. p. 45

junte-se às vantagens, já apontadas, do português do século xv sobre os povos colonizadores seus contemporâneos, a da sua moral sexual, moçárabe, a católica amaciada pelo contato com a maometana, e mais frouxa, mais relassa que a dos homens do norte. nem era entre eles a religião o mesmo duro e rígido sistema que entre os povos do norte reformado e da própria castela dramaticamente católica, mas uma liturgia antes social que religiosa, um doce cristianismo lírico, com muitas reminiscências fálicas e animistas das religiões pagãs: os santos e os anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa para se divertirem com o povo; os bois entrando pelas igrejas para ser benzidos pelos padres; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o menino-deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de são gonçalo do amarante; os maridos cismados de infidelidade conjugal indo interrogar os "rochedos dos cornudos" e as moças casadouras os "rochedos do casamento"; nossa senhora do ó adorada na imagem de uma mulher prenhe. p. 84

através de certas épocas coloniais observou-se a prática de ir um frade a bordo de todo navio que chegasse a porto brasileiro, a fim de examinar a consciência, a fé, a religião do adventício. o que barrava então o imigrante era a heterodoxia; a mancha de herege na alma e não a mongólica no corpo. do que se fazia questão era da saúde religiosa: a sífilis, a bouba, a bexiga, a lepra entraram livremente trazidas por europeus e negros de várias procedências. p. 91

"la situation fonctionnalle de cette population peut se résumer d'un mot: le brésil n'a pas de peuple", escreveu [louis] couty. palavras que joaquim nabuco repetiria dois anos depois do cientista francês: "são milhões", escrevia nabuco em 1883, "que se acham nessa condição intermédia, que não é o escravo, mas também não é o cidadão..." p. 98

costuma-se dizer que a civilização e a sifilização andam juntas: o brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. os primeiros europeus aqui chegados desapareceram na massa indígena quase sem deixar sobre ela outro traço europeizante além das manchas de mestiçagem e de sífilis. não civilizaram: há, entretanto, indícios de terem sifilizado a população aborígine que os absorveu. p. 110

mesmo em sinceras expressões individuais - não de todo invulgares nesta espécie de rússia americana que é o brasil - de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade pessoal, sente-se o laivo ou o resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto do sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se. p. 114

... do livro 'casa-grande & senzala' de gilberto freyre

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