Wednesday, March 09, 2005
eisner spritz
Três gotas de sangue mancharam o sapato de couro branco no chão de azulejos brancos da sala branca de operação. A enfermeira apoiou as mãos de látex na mesa de aço e ajustou a touca que prendia os cabelos negros.
—Doutor, acho que está frouxo aqui onde foi encaixado. Vazou um pouco.
—Deixa ver. Fica de olho nisso, por favor. Eu não posso me distrair desse lado aqui. Pode entrar água demais.
—Já terminou os braços?
—As duas pernas já, o braço direito ainda dá um pouco de trabalho. Depois a gente começa a trabalhar no peito e na cabeça.
—A região dos olhos parece muito sensível. Já começou a drenagem ali? Quer que eu busque mais da solução?
—Tem muito pouco, Alice. Quase não choveu esse mês. É melhor deixar o que ainda tem pro que é mais importante. Com as pernas e o outro braço a gente dá um jeito.
—E a drenagem?
—Tem razão. Eu já preparei tudo ali na cabeça. Só falta fazer as incisões principais. Pega o bisturi.
—É muito arriscado, doutor. Acho melhor o senhor fazer isso. Tenho medo que dê errado.
—Se você tem um pouco de receio, cuida aqui desse braço, que eu faço os cortes. Olha pra você aprender. O próximo está nas tuas mãos.
Alice viu com olhos imóveis a lâmina traçar contornos vermelhos no rosto do paciente. Os cortes estratégicos faziam jorrar pra fora o sangue. Parecia vulcão. Cabos levavam o líquido para o recipiente onde eletrodos controlavam a mistura. Choques intermitentes determinavam as porcentagens da água da chuva e o mercúrio. Outro tanque acrescentava doses de ferro e outras substâncias vitais. O sangue do paciente então escorre filtrado para a rede de esgoto.
—Sabia que minha irmã é atriz?
—É mesmo? Famosa? – perguntou sem olhar.
—Um pouco.
—Você preferiu a fama dos livros médicos. – disse sem tirar os olhos dos aparelhos de medição.
—Mais ou menos.
Uma ambulância passou pela avenida. O som das sirenes fez tremer os cabos de sangue. Alice foi até a janela e afastou um pouco a cortina.
—Vai chover, doutor.
—Certeza?
—Parece. O céu parece muito carregado. Olha o vermelho.
—Espero que não. Tudo bem que ajudaria aqui no consultório, mas – e foi até a janela – a Rebouças está um desastre. Precisava sair daqui logo.
—Posso fumar um cigarro? Estou morta.
—Vai, vai. Agora aqui vai demorar. A gente deixa ele assim pelo menos até amanhã. Com o cérebro não dá pra brincar. Eu deixei aqui na diluição automática, mas até preencher todos os capilares.
—Me acompanha?
—Eu não fumo, Alice.
—Mas vem só pra fazer companhia.
Quando se aproximou para tomar a mão do médico, encostou o pé esquerdo num dos cabos coletores. O sapato branco ficou mais vermelho de sangue.
—Merda. Isso não sai de jeito nenhum. E a gente ainda insiste em trabalhar de branco. Os uniformes tinham que ser vermelhos também. E esse céu com cara de chuva. Queria um café.
—Essa hora aqui no prédio não tem mais ninguém. E eu já tentei comprar das máquinas.
—E até quando a gente vai trabalhar assim, doutor Ivo?
—Estou esperando o conselho aprovar a prática. Por enquanto é uma coisa clandestina. Você só está aqui comigo porque confiam em você lá em cima.
—Sei que tem seu dedo nisso, mas também tive que trabalhar muito.
—Pediram que indicasse uma profissional. Você estava entre as melhores.
—Obrigada. Eu sei que pode ser muito importante pra minha carreira.
—Vai muito além disso, Alice. Isso pode mudar a história da humanidade. Nós somos os alquimistas do futuro.
—Por enquanto não sei de nada. Quero ver como vai ficar o primeiro. Tem certeza que ele não vai ficar muito azul?
—Não sei, Alice. A cor por enquanto vai ser assim. Não tem outro jeito. Tenho medo de acrescentar qualquer pigmento. A mistura de mercúrio com chuva é uma descoberta milagrosa. Consegue fazer papel de sangue. Agora qualquer outra substância pode provocar uma reação catastrófica. Precisa ter cuidado.
—E o problema dos globos oculares? Conseguiu diluir bem os metais?
—Isso sim. É chuva a solução. A água tem um certo grau de acidez que impede qualquer coágulo interno. Não vai bloquear nunca a passagem de oxigênio a nenhum vaso, nem mesmo os microscópicos dos olhos.
Alice olhou pro céu lá fora. Nuvens engrossavam e a Rebouças engessada. Catou o olhar do médico com o gancho do seu olho direito. Agarrou com força o jaleco branco dele, deixando marcas de dedo com o sangue das luvas. Puxou o rosto de Ivo pra perto do dela. Lambeu a testa do doutor.
—A saliva também tem certo grau de acidez que impede coágulos. Por isso aftas demoram pra sarar.
Sarita apagou o cigarro e deixou o copo plástico sobre a mesa cenográfica.
—Não posso chorar. Não me faça chorar agora.
—Precisa chorar aqui – disse apontando pro texto. – Eu sei que está cansada, mas a gente tem que acertar isso hoje, querida.
—Manchei de café o vestido. Desculpa.
—Amanhã a gente manda pra lavanderia bem cedo. O pessoal em Londres quer estrear ainda esse mês. Você sabe que isso é importante pra companhia.
—Cala a boca, Jorge. Eu sei que é importante. Por acaso agora tenho cara de estúpida? Eu sei que é importante. Desculpa pela mancha, desculpa o cigarro, desculpa o inferno.
—Calma. Vamos lá.
Jorge limpava impaciente as lentes dos óculos. Pediu com olhos cansados pra que o rapaz dos holofotes ajustasse de uma vez a intensidade das luzes. Não agüentava a penumbra incerta e o contraste com os relâmpagos lá fora.
—Luzes. Será que dá pra acertar dessa vez?
Sarita não enxergava o diretor. Só falava em sua direção.
—Não agüento mais ensaiar sozinha, Jorge. Eu entendo a pressa deles, mas fica difícil sem o Marco.
—A gente tem que trabalhar com a possibilidade de substituição. Se ele não sair logo do hospital, acho outro. Amanhã é o dia. Não sei por que quis fazer essa cirurgia agora.
—Eram os olhos, Jorge. Ele não se acostuma com as lentes e o personagem não usa óculos.
—Que ele não pode usar óculos eu sei, minha querida. Mas sei lá, arranjasse outro jeito. Todo dia agora eu tenho que explicar que temos um problema com um dos atores que se adoentou. – Suspirou fundo, tirou e pôs novamente os óculos. – Mas isso é um monólogo. Vai, anda logo.
—Não consigo enxergar.
—O texto, Sarita. Texto, por favor. Segue.
—Eu não consigo enxergar. Não consigo ver mais nada na minha frente e desses olhos não saem lágrimas tão cedo. Já chorei tudo que tinha que chorar.
—Eu não consigo enxergar como vai andar pra frente esse projeto. Eu não consigo enxergar como vão tirar essa mancha de café. A performance não pode ser assim: coagulada. Já não devíamos estar aqui. Apaga tudo – disse ao rapaz dos holofotes. – Agora.
A previsão era de chuva na zona oeste. Na Pompéia, onde ensaiava Sarita e na Doutor Arnaldo, onde Ivo e Alice trabalhavam na diluição, já caíam as primeiras gotas. Trovoadas depois e era tudo vermelho. O sangue caía pesado e férreo. Manchava os prédios e o asfalto. O trânsito obedecia coagulado. Algo estava errado.
—Doutor, o que acontece?
—Não sei, Alice. Talvez seja o sangue que a gente tem desviado para a rede pública. Mas impossível cair assim como chuva. É muito sangue.
—É um processo químico desconhecido. Só pode ser. É outro tipo de alquimia, outro tipo de reação, Ivo.
—Não sei o que dizer, Alice. Talvez seja uma coincidência macabra.
—Vou dar uma olhada no paciente. – O médico a seguiu até a sala de operação. Alice ajustava a saia ao caminhar.
—Parece tudo normal, não?
—Sim. Nada fora do comum. A tela mostra que ainda falta um terço da diluição, mas tudo parece ter corrido bem.
Ivo checou o pulso e olhou as pupilas do paciente. Normal.
—Está bem, Alice. Deixa. Hoje só amanhã. Esse vermelho lá fora pode ser a mudança da estação. Ou chuva ácida. Às vezes é a poluição do rio.
Alice foi à sala ao lado. Ligou o rádio à espera de notícias. Transmitiam um jogo de futebol. Nenhuma estação mencionava a chuva de sangue. Ivo se assustou quando o paciente acordou. Arrebentou os cabos que o mantinham preso à mesa. Dos furos nas veias vazava um pouco de chuva. Sua pele ganhara a cor azul escura do começo de noite paulistana.
—Como se sente? – perguntou o médico perplexo.
—Acabou? Já foi?
—Não se mexa. Espera.
Marco não obedeceu e desceu nu da mesa de operação. Seus pés azuis traçavam um caminho incerto entre as gotas de sangue espalhadas pelos azulejos. Alice então entrou na sala.
—Já terminou o processo, doutor?
—Não sei, Alice.
O homem azul esbarrou num carrinho com instrumentos. Tesouras e bisturis voaram ao chão numa trovoada metálica.
—Não consigo ver. Não enxergo nada, doutor Ivo.
—Calma. Deixa ver os olhos.
Ivo foi até o paciente e examinou as pupilas. Normais.
—Talvez seja melhor fazer uma radiografia. – disse Alice.
—Eu não posso esperar – disse Marco – tenho que ir. Alguém me espera. Estão me esperando. Já dá pra ver mais ou menos. As coisas só ficam azuis.
—Espera, Marco. Olha a chuva lá fora. Você também não pode ir embora assim. A gente nem sabe como está a sua saúde.
—Normal, Alice. Está normal. – disse Ivo.
—Eu não acho uma boa idéia ele sair assim. Nem terminou a diluição.
—Está bem, Alice. Deixa ele ir. Só vai tomar um pouco da sua chuva lá fora.
—Me sinto bem. É verdade. Só tenho a vista um pouco embaçada, como se tivessem nuvens dentro dos olhos. É meio que um mar de ponta cabeça.
—Eu não sei, Marco. Não sei o que você queria. Não entendo de literatura. Te deixei o mais próximo da chuva possível. O mercúrio que a gente acrescentou foi pra que não perdesse o peso, a substância. Quanto à pele, você v-
—Está bem. Gosto desse azul.
Sarita morava na rua Augusta. Desceu na Consolação e seguiu em direção ao centro. Estava encharcada de sangue. Tirou os sapatos e foi caminhando descalça pelo asfalto ensangüentado. Achou bonita a rua assim. O vermelho absorvia bem o calor dos néons. Pensava na peça, no vestido manchado e na turnê mal resolvida. Sentiu saudades dele e seu gosto no sangue que caía do céu.
Daí, alguns metros antes da entrada do seu prédio, viu o homem azul. Ficava melhor assim. Não perguntou por que tinha sumido. Só tomou as rosas que ele trazia, tirou o sangue dos cabelos e deu um beijou no homem de chuva. A diluição estava completa.
...e agora a previsão do tempo para amanhã: pela zona oeste chuva tipo 'o positivo', a zona sul passa a manhã livre de precipitação, porém pela tarde pode haver garoa tipo 'b'. o centro também recebe pancadas tipo 'b' com possível contaminção. neste momento, trânsito coagulado para quem segue em direção à avenida paulista pela rebouças.
—Doutor, acho que está frouxo aqui onde foi encaixado. Vazou um pouco.
—Deixa ver. Fica de olho nisso, por favor. Eu não posso me distrair desse lado aqui. Pode entrar água demais.
—Já terminou os braços?
—As duas pernas já, o braço direito ainda dá um pouco de trabalho. Depois a gente começa a trabalhar no peito e na cabeça.
—A região dos olhos parece muito sensível. Já começou a drenagem ali? Quer que eu busque mais da solução?
—Tem muito pouco, Alice. Quase não choveu esse mês. É melhor deixar o que ainda tem pro que é mais importante. Com as pernas e o outro braço a gente dá um jeito.
—E a drenagem?
—Tem razão. Eu já preparei tudo ali na cabeça. Só falta fazer as incisões principais. Pega o bisturi.
—É muito arriscado, doutor. Acho melhor o senhor fazer isso. Tenho medo que dê errado.
—Se você tem um pouco de receio, cuida aqui desse braço, que eu faço os cortes. Olha pra você aprender. O próximo está nas tuas mãos.
Alice viu com olhos imóveis a lâmina traçar contornos vermelhos no rosto do paciente. Os cortes estratégicos faziam jorrar pra fora o sangue. Parecia vulcão. Cabos levavam o líquido para o recipiente onde eletrodos controlavam a mistura. Choques intermitentes determinavam as porcentagens da água da chuva e o mercúrio. Outro tanque acrescentava doses de ferro e outras substâncias vitais. O sangue do paciente então escorre filtrado para a rede de esgoto.
—Sabia que minha irmã é atriz?
—É mesmo? Famosa? – perguntou sem olhar.
—Um pouco.
—Você preferiu a fama dos livros médicos. – disse sem tirar os olhos dos aparelhos de medição.
—Mais ou menos.
Uma ambulância passou pela avenida. O som das sirenes fez tremer os cabos de sangue. Alice foi até a janela e afastou um pouco a cortina.
—Vai chover, doutor.
—Certeza?
—Parece. O céu parece muito carregado. Olha o vermelho.
—Espero que não. Tudo bem que ajudaria aqui no consultório, mas – e foi até a janela – a Rebouças está um desastre. Precisava sair daqui logo.
—Posso fumar um cigarro? Estou morta.
—Vai, vai. Agora aqui vai demorar. A gente deixa ele assim pelo menos até amanhã. Com o cérebro não dá pra brincar. Eu deixei aqui na diluição automática, mas até preencher todos os capilares.
—Me acompanha?
—Eu não fumo, Alice.
—Mas vem só pra fazer companhia.
Quando se aproximou para tomar a mão do médico, encostou o pé esquerdo num dos cabos coletores. O sapato branco ficou mais vermelho de sangue.
—Merda. Isso não sai de jeito nenhum. E a gente ainda insiste em trabalhar de branco. Os uniformes tinham que ser vermelhos também. E esse céu com cara de chuva. Queria um café.
—Essa hora aqui no prédio não tem mais ninguém. E eu já tentei comprar das máquinas.
—E até quando a gente vai trabalhar assim, doutor Ivo?
—Estou esperando o conselho aprovar a prática. Por enquanto é uma coisa clandestina. Você só está aqui comigo porque confiam em você lá em cima.
—Sei que tem seu dedo nisso, mas também tive que trabalhar muito.
—Pediram que indicasse uma profissional. Você estava entre as melhores.
—Obrigada. Eu sei que pode ser muito importante pra minha carreira.
—Vai muito além disso, Alice. Isso pode mudar a história da humanidade. Nós somos os alquimistas do futuro.
—Por enquanto não sei de nada. Quero ver como vai ficar o primeiro. Tem certeza que ele não vai ficar muito azul?
—Não sei, Alice. A cor por enquanto vai ser assim. Não tem outro jeito. Tenho medo de acrescentar qualquer pigmento. A mistura de mercúrio com chuva é uma descoberta milagrosa. Consegue fazer papel de sangue. Agora qualquer outra substância pode provocar uma reação catastrófica. Precisa ter cuidado.
—E o problema dos globos oculares? Conseguiu diluir bem os metais?
—Isso sim. É chuva a solução. A água tem um certo grau de acidez que impede qualquer coágulo interno. Não vai bloquear nunca a passagem de oxigênio a nenhum vaso, nem mesmo os microscópicos dos olhos.
Alice olhou pro céu lá fora. Nuvens engrossavam e a Rebouças engessada. Catou o olhar do médico com o gancho do seu olho direito. Agarrou com força o jaleco branco dele, deixando marcas de dedo com o sangue das luvas. Puxou o rosto de Ivo pra perto do dela. Lambeu a testa do doutor.
—A saliva também tem certo grau de acidez que impede coágulos. Por isso aftas demoram pra sarar.
Sarita apagou o cigarro e deixou o copo plástico sobre a mesa cenográfica.
—Não posso chorar. Não me faça chorar agora.
—Precisa chorar aqui – disse apontando pro texto. – Eu sei que está cansada, mas a gente tem que acertar isso hoje, querida.
—Manchei de café o vestido. Desculpa.
—Amanhã a gente manda pra lavanderia bem cedo. O pessoal em Londres quer estrear ainda esse mês. Você sabe que isso é importante pra companhia.
—Cala a boca, Jorge. Eu sei que é importante. Por acaso agora tenho cara de estúpida? Eu sei que é importante. Desculpa pela mancha, desculpa o cigarro, desculpa o inferno.
—Calma. Vamos lá.
Jorge limpava impaciente as lentes dos óculos. Pediu com olhos cansados pra que o rapaz dos holofotes ajustasse de uma vez a intensidade das luzes. Não agüentava a penumbra incerta e o contraste com os relâmpagos lá fora.
—Luzes. Será que dá pra acertar dessa vez?
Sarita não enxergava o diretor. Só falava em sua direção.
—Não agüento mais ensaiar sozinha, Jorge. Eu entendo a pressa deles, mas fica difícil sem o Marco.
—A gente tem que trabalhar com a possibilidade de substituição. Se ele não sair logo do hospital, acho outro. Amanhã é o dia. Não sei por que quis fazer essa cirurgia agora.
—Eram os olhos, Jorge. Ele não se acostuma com as lentes e o personagem não usa óculos.
—Que ele não pode usar óculos eu sei, minha querida. Mas sei lá, arranjasse outro jeito. Todo dia agora eu tenho que explicar que temos um problema com um dos atores que se adoentou. – Suspirou fundo, tirou e pôs novamente os óculos. – Mas isso é um monólogo. Vai, anda logo.
—Não consigo enxergar.
—O texto, Sarita. Texto, por favor. Segue.
—Eu não consigo enxergar. Não consigo ver mais nada na minha frente e desses olhos não saem lágrimas tão cedo. Já chorei tudo que tinha que chorar.
—Eu não consigo enxergar como vai andar pra frente esse projeto. Eu não consigo enxergar como vão tirar essa mancha de café. A performance não pode ser assim: coagulada. Já não devíamos estar aqui. Apaga tudo – disse ao rapaz dos holofotes. – Agora.
A previsão era de chuva na zona oeste. Na Pompéia, onde ensaiava Sarita e na Doutor Arnaldo, onde Ivo e Alice trabalhavam na diluição, já caíam as primeiras gotas. Trovoadas depois e era tudo vermelho. O sangue caía pesado e férreo. Manchava os prédios e o asfalto. O trânsito obedecia coagulado. Algo estava errado.
—Doutor, o que acontece?
—Não sei, Alice. Talvez seja o sangue que a gente tem desviado para a rede pública. Mas impossível cair assim como chuva. É muito sangue.
—É um processo químico desconhecido. Só pode ser. É outro tipo de alquimia, outro tipo de reação, Ivo.
—Não sei o que dizer, Alice. Talvez seja uma coincidência macabra.
—Vou dar uma olhada no paciente. – O médico a seguiu até a sala de operação. Alice ajustava a saia ao caminhar.
—Parece tudo normal, não?
—Sim. Nada fora do comum. A tela mostra que ainda falta um terço da diluição, mas tudo parece ter corrido bem.
Ivo checou o pulso e olhou as pupilas do paciente. Normal.
—Está bem, Alice. Deixa. Hoje só amanhã. Esse vermelho lá fora pode ser a mudança da estação. Ou chuva ácida. Às vezes é a poluição do rio.
Alice foi à sala ao lado. Ligou o rádio à espera de notícias. Transmitiam um jogo de futebol. Nenhuma estação mencionava a chuva de sangue. Ivo se assustou quando o paciente acordou. Arrebentou os cabos que o mantinham preso à mesa. Dos furos nas veias vazava um pouco de chuva. Sua pele ganhara a cor azul escura do começo de noite paulistana.
—Como se sente? – perguntou o médico perplexo.
—Acabou? Já foi?
—Não se mexa. Espera.
Marco não obedeceu e desceu nu da mesa de operação. Seus pés azuis traçavam um caminho incerto entre as gotas de sangue espalhadas pelos azulejos. Alice então entrou na sala.
—Já terminou o processo, doutor?
—Não sei, Alice.
O homem azul esbarrou num carrinho com instrumentos. Tesouras e bisturis voaram ao chão numa trovoada metálica.
—Não consigo ver. Não enxergo nada, doutor Ivo.
—Calma. Deixa ver os olhos.
Ivo foi até o paciente e examinou as pupilas. Normais.
—Talvez seja melhor fazer uma radiografia. – disse Alice.
—Eu não posso esperar – disse Marco – tenho que ir. Alguém me espera. Estão me esperando. Já dá pra ver mais ou menos. As coisas só ficam azuis.
—Espera, Marco. Olha a chuva lá fora. Você também não pode ir embora assim. A gente nem sabe como está a sua saúde.
—Normal, Alice. Está normal. – disse Ivo.
—Eu não acho uma boa idéia ele sair assim. Nem terminou a diluição.
—Está bem, Alice. Deixa ele ir. Só vai tomar um pouco da sua chuva lá fora.
—Me sinto bem. É verdade. Só tenho a vista um pouco embaçada, como se tivessem nuvens dentro dos olhos. É meio que um mar de ponta cabeça.
—Eu não sei, Marco. Não sei o que você queria. Não entendo de literatura. Te deixei o mais próximo da chuva possível. O mercúrio que a gente acrescentou foi pra que não perdesse o peso, a substância. Quanto à pele, você v-
—Está bem. Gosto desse azul.
Sarita morava na rua Augusta. Desceu na Consolação e seguiu em direção ao centro. Estava encharcada de sangue. Tirou os sapatos e foi caminhando descalça pelo asfalto ensangüentado. Achou bonita a rua assim. O vermelho absorvia bem o calor dos néons. Pensava na peça, no vestido manchado e na turnê mal resolvida. Sentiu saudades dele e seu gosto no sangue que caía do céu.
Daí, alguns metros antes da entrada do seu prédio, viu o homem azul. Ficava melhor assim. Não perguntou por que tinha sumido. Só tomou as rosas que ele trazia, tirou o sangue dos cabelos e deu um beijou no homem de chuva. A diluição estava completa.
...e agora a previsão do tempo para amanhã: pela zona oeste chuva tipo 'o positivo', a zona sul passa a manhã livre de precipitação, porém pela tarde pode haver garoa tipo 'b'. o centro também recebe pancadas tipo 'b' com possível contaminção. neste momento, trânsito coagulado para quem segue em direção à avenida paulista pela rebouças.