Wednesday, February 09, 2005
milano-genova
Era um domingo de sol e carnaval em Milão. A saída da estação Duomo estava coberta de papel picado e sobras de baile. Na praça, crianças fantasiadas corriam no meio da festa no frio do inverno. Algumas muito pequenas não saiam do colo dos pais. Policiais olhavam de longe.
Impressiona nesse tempo sempre o vento gélido na saída do metrô, mas nessa estação tem também a vista deslumbrante da catedral. Naquele domingo, estava toda coberta com telas e andaimes. Enquanto o Teatro alla Scala acaba de ser restaurado, Il Duomo passa por reformas. A Vittorio Emanuele estava meio deserta. Multidão só no McDonald’s. Foi tudo que deu pra ver em duas horas de espera em Milão para pegar o trem até Gênova.
Corri atrasado pra Stazione Centrale. Peguei o trem no último minuto e demorei pra acomodar a bagagem. Os outros passageiros me olhavam como se fosse um louco. Deviam pensar que ia passear em Gênova, não trazer minha vida pra cá. E agora está tudo aqui e faz muito frio.
A cidade não é muito grande, mas abriga uma universidade, duas estações de trem, o maior aquário da Europa, a antiga casa de Cristóvão Colombo, incontáveis igrejas e catedrais, várias lojas de grife. Enfim, dá pra se cansar bastante.
Ainda não conheci tudo. Passei os últimos dias resolvendo questões burocráticas, que ainda tento resolver. Meu quarto aqui é melhor do que pensava. É espaçoso, tem uma mesa para estudar, uma pia só pra mim, um armário. E a vista é linda: a via San Martino inteira e lá em cima as casinhas nas montanhas nevadas.
O som que mais se ouve em Gênova é o de sirenes. Não sei por que tem sempre uma ambulância passando pela San Martino ou a rua de frente, a Gastaldi. E quando não é ambulância é um carro de polícia. Morre-se e rouba-se muito em Gênova.
Ainda estou sozinho num quarto para dois e por enquanto estou feliz. Não consigo ficar sozinho por muito tempo. Tem que ter sempre alguém pra me dar um abraço, um beijo, conversar. Isso faz muita falta. Mas por enquanto aproveito o tempo pra mim mesmo.
Hoje fui à Questura, a polícia daqui. Tenho que me apresentar, mostrar que estou aqui e explicar por quê. Faltam alguns papéis. Sempre faltam alguns papéis. E tenho que fazer um seguro de saúde, mas pra isso tenho que ter il permesso di soggiorno, mas pra isso tenho que ter um seguro de saúde. A burocracia brasileira tem grandes mestres aqui na Itália. A mulher da universidade que anda cuidando do meu caso descreve a situação como um gato que morde o próprio rabo.
Outra constatação sobre a fauna local: a mexicana que chegou para o mesmo programa diz que aqui hasta las palomas son gordas. Quer dizer que as pombas daqui vivem melhor que as mexicanas porque são européias. De fato, as pombas daqui não carecem de nada.
Aproveitando o México, perguntei sobre a fronteira. Érika me contou de uma amiga que entrou ilegalmente nos Estados Unidos, foi raptada e estuprada por outro mexicano ilegal com quem teve três filhos e ficou anos no país até conseguir fugir de volta para o México. Continuo à caça de idéias para o TCC e acho que mais pra frente farei uma visita a Lampedusa, uma cidade na Sicília que serve como ponto de entrada para africanos clandestinos na Europa.
Um professor universitário italiano foi preso dia desses no Charles de Gaulle em Paris por reclamar da maneira cruel que os agentes da polícia migratória francesa tratavam um clandestino vindo num vôo de Senegal. Junto com o italiano, foi preso outro professor francês que estava no mesmo vôo. Estava no La Stampa que leio sempre no café da manhã que consiste em um pedaço de pão e um café.
Essas histórias sempre mexem comigo. Preciso andar logo com minhas pesquisas. E hoje conheci alguém que se interessou pelo trabalho. Franco é um estudante italiano de ciências políticas. Ele me parou na rua pra distribuir um folheto sobre um curso que os Giovani dei Circoli Operai vão oferecer em março. Talvez me junte ao grupo de marxistas. Menos por ideologia e mais porque o Franco é extremamente simpático e muito bonito. Me estendeu a mão e disse piacere. Não difere do jeito que todos aqui na Itália se cumprimentam, mas o piacere dele foi mais prazeroso.
Agora escuto Tenderly na voz de Chet Baker. Lá fora, mais neve e mais sirenes. Amanhã começo as aulas de italiano. Não tem como não lembrar daquele filme Italian for Beginners. Os alunos todos estrangeiros meio perdidos e histórias de vida que começam a se cruzar. E o Circoli Operai acaba de me ligar, confirmando o convite para o encontro desta quinta-feira.
Impressiona nesse tempo sempre o vento gélido na saída do metrô, mas nessa estação tem também a vista deslumbrante da catedral. Naquele domingo, estava toda coberta com telas e andaimes. Enquanto o Teatro alla Scala acaba de ser restaurado, Il Duomo passa por reformas. A Vittorio Emanuele estava meio deserta. Multidão só no McDonald’s. Foi tudo que deu pra ver em duas horas de espera em Milão para pegar o trem até Gênova.
Corri atrasado pra Stazione Centrale. Peguei o trem no último minuto e demorei pra acomodar a bagagem. Os outros passageiros me olhavam como se fosse um louco. Deviam pensar que ia passear em Gênova, não trazer minha vida pra cá. E agora está tudo aqui e faz muito frio.
A cidade não é muito grande, mas abriga uma universidade, duas estações de trem, o maior aquário da Europa, a antiga casa de Cristóvão Colombo, incontáveis igrejas e catedrais, várias lojas de grife. Enfim, dá pra se cansar bastante.
Ainda não conheci tudo. Passei os últimos dias resolvendo questões burocráticas, que ainda tento resolver. Meu quarto aqui é melhor do que pensava. É espaçoso, tem uma mesa para estudar, uma pia só pra mim, um armário. E a vista é linda: a via San Martino inteira e lá em cima as casinhas nas montanhas nevadas.
O som que mais se ouve em Gênova é o de sirenes. Não sei por que tem sempre uma ambulância passando pela San Martino ou a rua de frente, a Gastaldi. E quando não é ambulância é um carro de polícia. Morre-se e rouba-se muito em Gênova.
Ainda estou sozinho num quarto para dois e por enquanto estou feliz. Não consigo ficar sozinho por muito tempo. Tem que ter sempre alguém pra me dar um abraço, um beijo, conversar. Isso faz muita falta. Mas por enquanto aproveito o tempo pra mim mesmo.
Hoje fui à Questura, a polícia daqui. Tenho que me apresentar, mostrar que estou aqui e explicar por quê. Faltam alguns papéis. Sempre faltam alguns papéis. E tenho que fazer um seguro de saúde, mas pra isso tenho que ter il permesso di soggiorno, mas pra isso tenho que ter um seguro de saúde. A burocracia brasileira tem grandes mestres aqui na Itália. A mulher da universidade que anda cuidando do meu caso descreve a situação como um gato que morde o próprio rabo.
Outra constatação sobre a fauna local: a mexicana que chegou para o mesmo programa diz que aqui hasta las palomas son gordas. Quer dizer que as pombas daqui vivem melhor que as mexicanas porque são européias. De fato, as pombas daqui não carecem de nada.
Aproveitando o México, perguntei sobre a fronteira. Érika me contou de uma amiga que entrou ilegalmente nos Estados Unidos, foi raptada e estuprada por outro mexicano ilegal com quem teve três filhos e ficou anos no país até conseguir fugir de volta para o México. Continuo à caça de idéias para o TCC e acho que mais pra frente farei uma visita a Lampedusa, uma cidade na Sicília que serve como ponto de entrada para africanos clandestinos na Europa.
Um professor universitário italiano foi preso dia desses no Charles de Gaulle em Paris por reclamar da maneira cruel que os agentes da polícia migratória francesa tratavam um clandestino vindo num vôo de Senegal. Junto com o italiano, foi preso outro professor francês que estava no mesmo vôo. Estava no La Stampa que leio sempre no café da manhã que consiste em um pedaço de pão e um café.
Essas histórias sempre mexem comigo. Preciso andar logo com minhas pesquisas. E hoje conheci alguém que se interessou pelo trabalho. Franco é um estudante italiano de ciências políticas. Ele me parou na rua pra distribuir um folheto sobre um curso que os Giovani dei Circoli Operai vão oferecer em março. Talvez me junte ao grupo de marxistas. Menos por ideologia e mais porque o Franco é extremamente simpático e muito bonito. Me estendeu a mão e disse piacere. Não difere do jeito que todos aqui na Itália se cumprimentam, mas o piacere dele foi mais prazeroso.
Agora escuto Tenderly na voz de Chet Baker. Lá fora, mais neve e mais sirenes. Amanhã começo as aulas de italiano. Não tem como não lembrar daquele filme Italian for Beginners. Os alunos todos estrangeiros meio perdidos e histórias de vida que começam a se cruzar. E o Circoli Operai acaba de me ligar, confirmando o convite para o encontro desta quinta-feira.
Saturday, February 05, 2005
a'dam em três
Vou lembrar de Amsterdã por três coisas fantásticas que vi e não achei estranho nessa cidade. No museu Van Gogh, enquanto via um dos quadros, senti que algo tocava meu pé. Era a bengala branca de um senhor cego. Saí do lugar para que ele passasse, mas ele parou ali. Certificou-se de que estava diante de um quadro. Era a paisagem marinha de Saintes Maries-de-Mer. Tirou os óculos escuros e ficou olhando. Não desgrudava os olhos brancos da água azul da tela.
De madrugada, a Leidsestraat vazia, uma mulher passava de bicicleta. Dava pra ouvir só o sino e a voz dela cantando "oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz" enquanto carregava uma flor branca gigantesca. Só ela, a flor e a música ecoando entre os prédios que parecem despencar eternamente sobre os canais.
E teve mais um. Chegando de trem na Centraal Station, vi milhares de gaivotas voando em torno da Sint Nicolaaskerk. Entrei na igreja e o coral começou a cantar. O grave dos tenores fez afundar no peito certo conforto, me encaixou nas engrenagens daqui. O agudo das sopranos pontuava o que foi brotando da minha saudade.
Saí antes do fim da missa e continuei até a Dam, onde fica o palácio da rainha Beatrix e um carrossel. Dobrei à esquerda na Warmoestraat e olhei pelas janelas dos hotéis de luxo. Hoje foi o dia mais frio em Amsterdã. Amanhã enfrento a Itália.
De madrugada, a Leidsestraat vazia, uma mulher passava de bicicleta. Dava pra ouvir só o sino e a voz dela cantando "oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz" enquanto carregava uma flor branca gigantesca. Só ela, a flor e a música ecoando entre os prédios que parecem despencar eternamente sobre os canais.
E teve mais um. Chegando de trem na Centraal Station, vi milhares de gaivotas voando em torno da Sint Nicolaaskerk. Entrei na igreja e o coral começou a cantar. O grave dos tenores fez afundar no peito certo conforto, me encaixou nas engrenagens daqui. O agudo das sopranos pontuava o que foi brotando da minha saudade.
Saí antes do fim da missa e continuei até a Dam, onde fica o palácio da rainha Beatrix e um carrossel. Dobrei à esquerda na Warmoestraat e olhei pelas janelas dos hotéis de luxo. Hoje foi o dia mais frio em Amsterdã. Amanhã enfrento a Itália.
Friday, February 04, 2005
amsterdã
Amsterdã é um relógio. A cidade roda em cima de engrenagens de canais, trilhos e bicicletas. Não há ruídos aqui, só o leve roçar metálico dos trens de superfície e sinos de igrejas distantes.
Damrak, na saída da Centraal Station, é uma avenida principal que leva até o centro, a partir de onde a cidade é cortada por canais concêntricos. São três, Herengracht, Keizersgracht e Prinsengracht. Os prédios que margeiam os canais, datados do século XV, debruçam-se sobre a água ou pendem para o lado. Os alicerces de madeira não resistem ao tempo e à infiltração da água que circunda a cidade, que fica dois metros abaixo do nível do mar.
O movimento das construções é lento, centímetros a cada década. Mesmo corroídas, as bases dos prédios parecem não respeitar o tempo. Aqui, ele parece dilatado. As horas não têm fim, não há pressa. É como se os canais isolassem a cidade do resto do mundo. Parece não haver sobressaltos, mas pode ser também a impressão de que os holandeses sabem fazer o dia caber em 24 horas. O trajeto de um lado a outro da cidade não leva mais que 20 minutos e da estação central partem trens para Bruxelas, Antuérpia, Roterdã e Paris em todos os horários.
É inverno e anoitece cedo. A cidade parece cinza à tarde e mergulha num azul profundo antes do escurecer. Van Gogh disse que a Holanda era sim tomada por um cinza. Talvez seja por isso que foi pintar campos de trigo na França muito mais colorida.
E esse tom pode ser menos uma cor e mais um sentimento. A sensação fez Rembrandt usar cores mais sóbrias, enfatizar os contrastes e fazer da sua pintura uma arte fotográfica, bem antes da sua invenção.
A cidade pare refletir o foco seletivo de Rembrandt. Mesmo sóbria, cinzenta, ela grita contrastes, abriga todas as raças e línguas e mantém o foco naqueles que ainda mantém laços com a terra natal.
O mercado de flores da Singel é também reduto de turcos e marroquinos. O Red Light District abriga refugiados do leste europeu e holandeses das ex-colônias espalham sua cultura pelas praças de Amsterdã.
Na cidade onde tudo é permitido, a sensação é de harmonia. Todos os anos, a prefeitura paga indenizações aos familiares de vítimas de acidentes com os trens de superfície, que trafegam no mais assustador silêncio. Serve de ilustração para dizer que aqui as coisas caminham pra frente, a ordem é o progresso, o ponto de partida, a tolerância.
Os trilhos urbanos daqui não têm espaço para quem impede o perfeito funcionamento das engrenagens.
Damrak, na saída da Centraal Station, é uma avenida principal que leva até o centro, a partir de onde a cidade é cortada por canais concêntricos. São três, Herengracht, Keizersgracht e Prinsengracht. Os prédios que margeiam os canais, datados do século XV, debruçam-se sobre a água ou pendem para o lado. Os alicerces de madeira não resistem ao tempo e à infiltração da água que circunda a cidade, que fica dois metros abaixo do nível do mar.
O movimento das construções é lento, centímetros a cada década. Mesmo corroídas, as bases dos prédios parecem não respeitar o tempo. Aqui, ele parece dilatado. As horas não têm fim, não há pressa. É como se os canais isolassem a cidade do resto do mundo. Parece não haver sobressaltos, mas pode ser também a impressão de que os holandeses sabem fazer o dia caber em 24 horas. O trajeto de um lado a outro da cidade não leva mais que 20 minutos e da estação central partem trens para Bruxelas, Antuérpia, Roterdã e Paris em todos os horários.
É inverno e anoitece cedo. A cidade parece cinza à tarde e mergulha num azul profundo antes do escurecer. Van Gogh disse que a Holanda era sim tomada por um cinza. Talvez seja por isso que foi pintar campos de trigo na França muito mais colorida.
E esse tom pode ser menos uma cor e mais um sentimento. A sensação fez Rembrandt usar cores mais sóbrias, enfatizar os contrastes e fazer da sua pintura uma arte fotográfica, bem antes da sua invenção.
A cidade pare refletir o foco seletivo de Rembrandt. Mesmo sóbria, cinzenta, ela grita contrastes, abriga todas as raças e línguas e mantém o foco naqueles que ainda mantém laços com a terra natal.
O mercado de flores da Singel é também reduto de turcos e marroquinos. O Red Light District abriga refugiados do leste europeu e holandeses das ex-colônias espalham sua cultura pelas praças de Amsterdã.
Na cidade onde tudo é permitido, a sensação é de harmonia. Todos os anos, a prefeitura paga indenizações aos familiares de vítimas de acidentes com os trens de superfície, que trafegam no mais assustador silêncio. Serve de ilustração para dizer que aqui as coisas caminham pra frente, a ordem é o progresso, o ponto de partida, a tolerância.
Os trilhos urbanos daqui não têm espaço para quem impede o perfeito funcionamento das engrenagens.