Wednesday, December 29, 2004
jornalistas e revolucionários
[João Sant’Anna] escreveu o notável editorial do número zero de Repórter, uma confissão do estado de espírito dos jornalistas jovens da grande imprensa no período pós-Herzog, a geração do medo:
Nós somos uma geração de jornalistas formados no AI-5, na paranóia. Nós somos o medo. Ele escorre por cada linha que escrevemos. E mancha o papel de vergonha. Nosso jeito de escrever foi moldado pela grande imprensa – pela autocensura. Nosso trabalho, raras vezes tinha um sentido social. Tinha apenas um sentido prático: sobreviver, de medo. Não devemos acusar ninguém pelo que não dissemos: com raras exceções devemos acusar nós mesmos.
Esse número zero do Repórter poderia ter sido muito melhor. Muito mais verdadeiro. Mas não foi possível: tivemos medo. E só por isso compreendemos aqueles que se recusaram a colaborar. Ou até mesmo a falar. São nossos companheiros no medo que nos sufoca.
Também o correspondente [do Opinião] em Brasília, Julio César Montenegro, queixa-se de censura interna que relaciona a um estilo de redação autoritário:
Como é que um jornal que se propõe a abrir o debate com o mundo exterior fecha o debate entre seus colaboradores [...] nesses dias que passei aí notei que as discussões são poucas, as reuniões de pauta são uma listagem de assuntos... sei que a situação, as dificuldades de tempo e gente, forçam a tomada se resoluções sem ouvir ninguém, mas estou preocupado com a transformação disso em hábito. Só para exemplificar: quando estávamos lendo as matérias para escolher o que iria no nacional, você vetou tão sumariamente a notícia da greve de Minas, que eu quase nem tentei argumentar [...] esse é um caso menos (será?), embora eu tenha usado como exemplo. Certo, alguém tem que tomar todas as resoluções, enquanto os menos experientes aprendem. Só que o mesmíssimo argumento é usado para afastar o povo das decisões do governo [...] é por tudo isso que eu acho desagradável e em choque com o que Opinião representa, que você tenha dito “não quero discutir mais esse assunto”. Por quê? Se a minha posição é fácil de ser contestada, por que se recusar ao pequeno trabalho?
Duarte Pacheco publicou o Ensaio Popular “O culto ao último livro”, que perguntava “ler mais é saber mais?” E respondia: “O erro dos que sucumbem ao culto desenfreado dos livros é profundo; querer desenvolver uma teoria sem experiências práticas é como pretender levantar-se do chão puxando os próprios cabelos”.
O “racha” de Movimento sinalizava uma ruptura que ia além dos limites de um jornal alternativo, fruto de longo processo de rejeição do paradigma stalinista:
Consideramos assim, rompidos os compromissos que Movimento assumiu em seu número zero, com o público leitor, com todos os que apoiaram e com aqueles que nele trabalhassem ou viessem a trabalhar. Lá se [prometia] uma empresa jornalística onde as pessoas que escrevessem, de fato e de direito, ou seja, também juridicamente, tivessem poder de decisão para garantir a observação de suas idéias [...] ao contrário dessa democracia de fato e de direito, chegamos, em Movimento, a uma situação semelhante àquela descrita pela própria equipe que saía do jornal Opinião, em 1975: “era como se, num projeto que pertencia de fato a várias pessoas, uma das partes tomasse uma decisão fundamental unilateralmente” [...].
Em Tempo não tinha editor formal; prevaleceram na organização interna do jornal os princípios da descentralização e autonomia total das editorias. A editoria de cultura, em especial, havia se auto-estruturado como entidade completamente autônoma, autogerida e contrária a qualquer interferência externa a ela mesma. Tinha uma “gestão coletiva [...] distribuída por um corpo de três editores com iguais poderes de decisão [...] e um corpo de pauta e redação com poder de avaliação, execução e aprovação indicativa das matérias”. É também a que melhor elabora uma fundamentação teórica para esse novo tipo de gestão jornalística em que toda a criação e edição são processos coletivos e autogeridos. Não há, nessa estrutura, lugar nem para o editor nem para subeditores nem para o copy desk, acusado de ser o agente principal da burguesia na padronização e homogeinização do texto, na criação de uma “metafísica do texto”. Negava-se ao editor, aos outros dirigentes, ou coletivos do jornal, qualquer poder de interação com as matérias de cultura. Era execrado o corte de matérias e abolido o comando hierárquico baseado em indivíduos, classificado como necessariamente arbitrário. Toda discussão era remetida a instâncias coletivas de base.
A editoria de cultura [do Em Tempo] se propõe a tratar de tudo, e não apenas de cultura no sentido estrito, pois a “produção crítica de artes se insere no âmbito da luta por novas mentalidades, por novos valores, novas formas de expressão e de associação no âmbito da luta ideológica [...]”. Era uma maneira de influir sobre o jornal como um todo e, eventualmente, determinar sua linha.
...do livro 'jornalistas e revolucionários nos tempos da imprensa alternativa' de bernardo kucinski
Nós somos uma geração de jornalistas formados no AI-5, na paranóia. Nós somos o medo. Ele escorre por cada linha que escrevemos. E mancha o papel de vergonha. Nosso jeito de escrever foi moldado pela grande imprensa – pela autocensura. Nosso trabalho, raras vezes tinha um sentido social. Tinha apenas um sentido prático: sobreviver, de medo. Não devemos acusar ninguém pelo que não dissemos: com raras exceções devemos acusar nós mesmos.
Esse número zero do Repórter poderia ter sido muito melhor. Muito mais verdadeiro. Mas não foi possível: tivemos medo. E só por isso compreendemos aqueles que se recusaram a colaborar. Ou até mesmo a falar. São nossos companheiros no medo que nos sufoca.
Também o correspondente [do Opinião] em Brasília, Julio César Montenegro, queixa-se de censura interna que relaciona a um estilo de redação autoritário:
Como é que um jornal que se propõe a abrir o debate com o mundo exterior fecha o debate entre seus colaboradores [...] nesses dias que passei aí notei que as discussões são poucas, as reuniões de pauta são uma listagem de assuntos... sei que a situação, as dificuldades de tempo e gente, forçam a tomada se resoluções sem ouvir ninguém, mas estou preocupado com a transformação disso em hábito. Só para exemplificar: quando estávamos lendo as matérias para escolher o que iria no nacional, você vetou tão sumariamente a notícia da greve de Minas, que eu quase nem tentei argumentar [...] esse é um caso menos (será?), embora eu tenha usado como exemplo. Certo, alguém tem que tomar todas as resoluções, enquanto os menos experientes aprendem. Só que o mesmíssimo argumento é usado para afastar o povo das decisões do governo [...] é por tudo isso que eu acho desagradável e em choque com o que Opinião representa, que você tenha dito “não quero discutir mais esse assunto”. Por quê? Se a minha posição é fácil de ser contestada, por que se recusar ao pequeno trabalho?
Duarte Pacheco publicou o Ensaio Popular “O culto ao último livro”, que perguntava “ler mais é saber mais?” E respondia: “O erro dos que sucumbem ao culto desenfreado dos livros é profundo; querer desenvolver uma teoria sem experiências práticas é como pretender levantar-se do chão puxando os próprios cabelos”.
O “racha” de Movimento sinalizava uma ruptura que ia além dos limites de um jornal alternativo, fruto de longo processo de rejeição do paradigma stalinista:
Consideramos assim, rompidos os compromissos que Movimento assumiu em seu número zero, com o público leitor, com todos os que apoiaram e com aqueles que nele trabalhassem ou viessem a trabalhar. Lá se [prometia] uma empresa jornalística onde as pessoas que escrevessem, de fato e de direito, ou seja, também juridicamente, tivessem poder de decisão para garantir a observação de suas idéias [...] ao contrário dessa democracia de fato e de direito, chegamos, em Movimento, a uma situação semelhante àquela descrita pela própria equipe que saía do jornal Opinião, em 1975: “era como se, num projeto que pertencia de fato a várias pessoas, uma das partes tomasse uma decisão fundamental unilateralmente” [...].
Em Tempo não tinha editor formal; prevaleceram na organização interna do jornal os princípios da descentralização e autonomia total das editorias. A editoria de cultura, em especial, havia se auto-estruturado como entidade completamente autônoma, autogerida e contrária a qualquer interferência externa a ela mesma. Tinha uma “gestão coletiva [...] distribuída por um corpo de três editores com iguais poderes de decisão [...] e um corpo de pauta e redação com poder de avaliação, execução e aprovação indicativa das matérias”. É também a que melhor elabora uma fundamentação teórica para esse novo tipo de gestão jornalística em que toda a criação e edição são processos coletivos e autogeridos. Não há, nessa estrutura, lugar nem para o editor nem para subeditores nem para o copy desk, acusado de ser o agente principal da burguesia na padronização e homogeinização do texto, na criação de uma “metafísica do texto”. Negava-se ao editor, aos outros dirigentes, ou coletivos do jornal, qualquer poder de interação com as matérias de cultura. Era execrado o corte de matérias e abolido o comando hierárquico baseado em indivíduos, classificado como necessariamente arbitrário. Toda discussão era remetida a instâncias coletivas de base.
A editoria de cultura [do Em Tempo] se propõe a tratar de tudo, e não apenas de cultura no sentido estrito, pois a “produção crítica de artes se insere no âmbito da luta por novas mentalidades, por novos valores, novas formas de expressão e de associação no âmbito da luta ideológica [...]”. Era uma maneira de influir sobre o jornal como um todo e, eventualmente, determinar sua linha.
...do livro 'jornalistas e revolucionários nos tempos da imprensa alternativa' de bernardo kucinski