Wednesday, December 29, 2004
a ditadura envergonhada
nos primeiros meses do que se denominava "operação limpeza", o presidente da cgi, o marechal estevão taurino de rezende, reconheceu que "o problema do comunismo perde expressão diante da corrupção administrativa nos últimos anos" e se confessava "abatido pela extensão das irregularidades já verificadas", pois mesmo sendo "triste para um soldado ter de dizer isto [...] a impressão é de que, se fosse tudo apurado, o brasil se esvaziaria". pp. 134-135
castello vacilara, mas no fim de seu mandato construíra-se uma tentativa de constitucionalização do regime. apesar da anarquia e da indisciplina que o atazanaram, seu governo foi o que mais contribuiu para a profissionalização das forças armadas brasileiras em toda a história do país. p. 138
mobilizando suas energias políticas contra a "campanha", e não contra a tortura, o regime de 1964 comprometeu-se com uma mistificação e, por vinte anos, comportou-se como se o combate à tortura não fizesse parte da luta em defesa dos direitos do homem. negar a tortura significava defender o regime. denunciá-la ou confirmá-la era atacá-lo. [...] deu-se por conveniência, medo e arrogância a metamorfose descrita pela filósofa alemã hannah arendt em seu magistral estudo "verdade e política": "o apagamento da linha divisória entre verdade fatual e opinião é uma das inúmeras formas que o mentir pode assumir". p. 149
a missão geisel quis ser um compromisso liberal do governo, mas resultou num acerto que em vez de desarticular a tortura, perdoou-a. a conciliação de setembro de 1964 danificou a consciência da cúpula militar pela sensação que ofereceu de ter salvado simultaneamente a pele de muitos presos e a farda dos torturadores. alimentou a lenda cultivada pelas forças armadas segundo a qual, mesmo dirigindo regimes repressivos, mantinham-se distantes dos crimes neles praticados. p. 150
quanto à autonomia administrativa e à jurisdição, o serviço [nacional de informações] nasceu invulnerável. ao contrário do que ocorria com os chefes dos serviços de informações nos estados unidos, união soviética, frança e inglaterra, o chefe do sni ganhou status de superministro. enquanto em todo o mundo os serviços de informações prestavam contas a algum tipo de instituição, quer a uma comissão do congresso (no caso da cia) quer à cúpula colegiada do comitê central (no caso da kgb), golbery criou um organismo que só respondia ao presidente da república. p. 156
o sni nasceu fazendo em segredo tudo aquilo que a presidência precisava que fosse bem-feito. assim, se uma votação no congresso parecia difícil, cabia ao serviço - e não à liderança parlamentar ou ao gabinete civil - facilitar as negociações com a bancada. p. 168
pela estrutura logística, o sni ficou entre os dez mais bem equipados serviços de informações do mundo. seu poder de alavancagem política foi superior ao da cia, do intelligence service, ou mesmo da kgb. p. 169
típica malvadeza contra o "ministro do silêncio": o general emilio garrastazú medici, designado por costa e silva para chefiar o sni, anunciou menos de um mês antes de tomar posse que ia administrar o serviço com "o gabinete aberto aos jornalistas", pois "não entendo como se pode exercer uma função pública sem prestar contas". p. 172
como sempre acontece com os fracassos, [jefferson] cardim foi dado por louco e o assunto, esquecido. para a esquerda, sua aventura demonstrou algo cruel: por maior que fosse o descontentamento com o regime, ninguém sairia à rua para tentar derrubá-lo apenas porque uma coluna de guerrilheiros cruzara a fronteira. p. 194
em janeiro de 1966 fidel instalou no hotel habana libre a conferência tricontinental de solidariedade dos povos. nela, uma guerrilheira vietcongue presenteou-o com um anel feito da fuselagem de um avião americano derrubado no vietnã. por todos os aspectos cênicos, a reunião parecia uma tentativa de organização do funeral do imperialismo. na essência, porém, era a primeira grande quermesse anti-soviética do esquerdismo latino-americano. de 22 partidos comunistas ligados a moscou no continente, só três chefiavam delegações na festa. p. 197
por uma fatalidade histórica, começou em 1964 no brasil um período de supressão das liberdades públicas precisamente quando o mundo vivia um dos períodos mais ricos e divertidos da história da humanidade. nesse choque, duas rodas giraram em sentido contrário, moendo uma geração e vinte anos da vida nacional. p. 211
beat. essa palavra designava uma nova voz da alma. nos anos 40 era usada para definir um trato de drogas trapaceado. herbert huncke, um prostituto, ladrão do norte de chicago, passou-a a um vagabundo que falava em escrever um livro. chamava-se jack kerouac. beat, para huncke, significava "derrotado", "com o mundo contra mim". em 1957 um jornalista do san francisco chronicle inventou o termo que definiria as pessoas que se sentiam como huncke: beatnik. capturava o sufixo do sputnik, o primeiro satélite artificial colocado em órbita ao redor da terra pelos russos. um beatnik, como o satélite, gravitava muito longe daquilo que se considerava o mundo real. p. 214
quando o marechal castello branco entrou no palácio do planalto, levou para o governo um mundo em que kerouac seria um homossexual bêbado, [allen] ginsberg um judeu doido, [aldous] huxley um inglês excêntrico, wright mills um exibicionista [herbert] marcuse um alemão perigoso, [martin luther] king um ingênuo sonhador e fanon, um negro desconhecido. [...] tratava-se de um mundo onde a igualdade racial era uma aspiração filosófica, o homossexualismo uma anomalia e a condição feminina, um estuário procriador, amoroso e doméstico. p. 215
nos últimos dias da república de 1946, o brasileiro que melhor encarnaria as perplexidades e a audácia de sua geração, o baiano glauber rocha, de 24 anos, mostrou no rio de janeiro seu filme deus e o diabo na terra do sol, magistral épico da perseguição e morte do cangaceiro corisco. "mais fortes são os poderes do povo!", gritava, com balas no corpo e os olhos na platéia. p. 219
castello lutava para desembaraçar-se do risco da ditadura por meio dos mais diversos recursos. para espanar a pátina do irracionalismo que lhe cobria o governo, mostrava-se homem de cultura. almoçava no palácio laranjeiras com o poeta manuel bandeira, ia às peças de teatro de tônia carrero, freqüentava as chatas sessões de posse na academia brasileira de letras. p. 221
a criminalização da política nas escolas foi um mau passo dado num país onde o movimento estudantil, pela sua tradição, tinha um pé na esquerda e outro na elite, permitindo um tráfego histórico de idéias e sobrenomes. [...] o movimento estudantil não cabia na clandestinidade simplesmente porque era uma espécie de espoleta histórica do intrincado processo de metamorfoses ideológicas da plutocracia nacional. p. 227
em dezembro de 1964, num shopping center inacabado de copacabana, estreou o show opinião. misturava sambão, jazz, baladas nordestinas, comentários políticos e melodias da bossa nova. no meio dessa salada estava a doce figura de nara leão, uma moça tímida da classe média carioca. transformada em musa da bossa nova, vestida com calça jeans e uma blusa vermelha, cantava "carcará", história de um pássaro malvado que "pega, mata e come", ruim como o regime. p. 229
no dia 24 de abril de 1965, quando o show opinião saiu de cartaz, foi substituído pela peça liberdade, liberdade, uma colagem de textos antiditatoriais. pelo talento de paulo autran, seu ator principal, e pela metáfora que era o espetáculo em si, funcionava como uma lavagem de alma para a classe média. habilmente, misturavam-se cantos e textos das vítimas de todas as opressões, com mão forte para os dissidentes soviéticos. logo nos primeiros dias de encenação apareceram provocadores na platéia, gritando piadas que autran toreava com classe. depois vieram ameaças telefônicas: o teatro seria explodido. elas chegaram ao conhecimento de castello, que escreveu a costa e silva: "as ameaças de que oficiais vão acabar com o espetáculo são de aterrorizar a liberdade de opinião". p. 253
a dinâmica do regime, com suas crises militares, chocava-se com a conduta do presidente. nesses choques, todas as vitórias de castello foram parciais, enquanto as derrotas foram totais. a maior de suas vitórias foi a realização de eleições diretas para os governos de doze estados, em 3 de outubro de 1965. a maior derrota de seu projeto de restauração da ordem foi a edição do ato institucional 2, três semanas depois. p. 254
de acordo com as normas da anarquia, pouparam-se os insubordinados, e puniram-se as instituições democráticas. p. 259
olhada, a passeata era uma festa. manifestação de gente alegre, mulheres bonitas com perna de fora, juventude e poesia. caminhava em cordões. havia nela a ala dos artistas, o bloco dos padres (150), a linha dos deputados. ia abençoada pelo cardeal do rio de janeiro, o arquiconservador d. jaime câmara, que em abril de 1964 benzera a marcha da vitória. muitas pessoas andavam de mãos dadas. todo o rio de janeiro parecia estar na avenida. a serena figura da escritora clarice lispector e norma bengell, a desesperada de terra em transe; nara leão, vinicius de moraes e chico buarque de hollanda, que com a poesia de "carolina", e seus olhos verdes, encantava toda uma geração. personagens saídos da crônica social misturavam-se com estudantes saídos do dops. do alto das janelas a cidade jogava papel picado. catedral frentista, a passeata dos cem mil saiu da cinelândia, jovem, bela e poderosa. parecia o funeral do consulado militar. p. 296
a idéia das cidades como cemitério da guerrilha era mais que uma imagem retórica. dispensando a montagem de bases rurais, as organizações armadas aprisionaram-se, principalmente em são paulo e no rio de janeiro. dispensando o campo, perderam um refúgio eficaz e barato para os militantes identificados pelo governo. um estudo da vida de 76 organizações terroristas de todo o mundo informa que os grupos amparados por bases rurais se mostraram mais longevos que os focos simplesmente urbanos. quase todos os grupos sem um pé no campo, agindo e vivendo no mesmo país, duraram de um a cinco anos. p. 353
... do livro 'a ditadura envergonhada' de elio gaspari
jornalistas e revolucionários
Nós somos uma geração de jornalistas formados no AI-5, na paranóia. Nós somos o medo. Ele escorre por cada linha que escrevemos. E mancha o papel de vergonha. Nosso jeito de escrever foi moldado pela grande imprensa – pela autocensura. Nosso trabalho, raras vezes tinha um sentido social. Tinha apenas um sentido prático: sobreviver, de medo. Não devemos acusar ninguém pelo que não dissemos: com raras exceções devemos acusar nós mesmos.
Esse número zero do Repórter poderia ter sido muito melhor. Muito mais verdadeiro. Mas não foi possível: tivemos medo. E só por isso compreendemos aqueles que se recusaram a colaborar. Ou até mesmo a falar. São nossos companheiros no medo que nos sufoca.
Também o correspondente [do Opinião] em Brasília, Julio César Montenegro, queixa-se de censura interna que relaciona a um estilo de redação autoritário:
Como é que um jornal que se propõe a abrir o debate com o mundo exterior fecha o debate entre seus colaboradores [...] nesses dias que passei aí notei que as discussões são poucas, as reuniões de pauta são uma listagem de assuntos... sei que a situação, as dificuldades de tempo e gente, forçam a tomada se resoluções sem ouvir ninguém, mas estou preocupado com a transformação disso em hábito. Só para exemplificar: quando estávamos lendo as matérias para escolher o que iria no nacional, você vetou tão sumariamente a notícia da greve de Minas, que eu quase nem tentei argumentar [...] esse é um caso menos (será?), embora eu tenha usado como exemplo. Certo, alguém tem que tomar todas as resoluções, enquanto os menos experientes aprendem. Só que o mesmíssimo argumento é usado para afastar o povo das decisões do governo [...] é por tudo isso que eu acho desagradável e em choque com o que Opinião representa, que você tenha dito “não quero discutir mais esse assunto”. Por quê? Se a minha posição é fácil de ser contestada, por que se recusar ao pequeno trabalho?
Duarte Pacheco publicou o Ensaio Popular “O culto ao último livro”, que perguntava “ler mais é saber mais?” E respondia: “O erro dos que sucumbem ao culto desenfreado dos livros é profundo; querer desenvolver uma teoria sem experiências práticas é como pretender levantar-se do chão puxando os próprios cabelos”.
O “racha” de Movimento sinalizava uma ruptura que ia além dos limites de um jornal alternativo, fruto de longo processo de rejeição do paradigma stalinista:
Consideramos assim, rompidos os compromissos que Movimento assumiu em seu número zero, com o público leitor, com todos os que apoiaram e com aqueles que nele trabalhassem ou viessem a trabalhar. Lá se [prometia] uma empresa jornalística onde as pessoas que escrevessem, de fato e de direito, ou seja, também juridicamente, tivessem poder de decisão para garantir a observação de suas idéias [...] ao contrário dessa democracia de fato e de direito, chegamos, em Movimento, a uma situação semelhante àquela descrita pela própria equipe que saía do jornal Opinião, em 1975: “era como se, num projeto que pertencia de fato a várias pessoas, uma das partes tomasse uma decisão fundamental unilateralmente” [...].
Em Tempo não tinha editor formal; prevaleceram na organização interna do jornal os princípios da descentralização e autonomia total das editorias. A editoria de cultura, em especial, havia se auto-estruturado como entidade completamente autônoma, autogerida e contrária a qualquer interferência externa a ela mesma. Tinha uma “gestão coletiva [...] distribuída por um corpo de três editores com iguais poderes de decisão [...] e um corpo de pauta e redação com poder de avaliação, execução e aprovação indicativa das matérias”. É também a que melhor elabora uma fundamentação teórica para esse novo tipo de gestão jornalística em que toda a criação e edição são processos coletivos e autogeridos. Não há, nessa estrutura, lugar nem para o editor nem para subeditores nem para o copy desk, acusado de ser o agente principal da burguesia na padronização e homogeinização do texto, na criação de uma “metafísica do texto”. Negava-se ao editor, aos outros dirigentes, ou coletivos do jornal, qualquer poder de interação com as matérias de cultura. Era execrado o corte de matérias e abolido o comando hierárquico baseado em indivíduos, classificado como necessariamente arbitrário. Toda discussão era remetida a instâncias coletivas de base.
A editoria de cultura [do Em Tempo] se propõe a tratar de tudo, e não apenas de cultura no sentido estrito, pois a “produção crítica de artes se insere no âmbito da luta por novas mentalidades, por novos valores, novas formas de expressão e de associação no âmbito da luta ideológica [...]”. Era uma maneira de influir sobre o jornal como um todo e, eventualmente, determinar sua linha.
...do livro 'jornalistas e revolucionários nos tempos da imprensa alternativa' de bernardo kucinski
Saturday, December 25, 2004
mrs dalloway
as a cloud crosses the sun, silence falls on london; and falls on the mind. effort ceases. time flaps on the mast. there we stop; there we stand. rigid, the skeleton of habit alone upholds the human frame.
they looked in at a shop window; they did not wish to buy or to talk but to part, only with contrary winds buffeting the street corner, with some sort of lapse in the tides of the body, two forces meeting in a swirl, morning and afternoon, they paused. some newspaper placard went up in the air, gallantly, like a kite at first, then paused, swooped, fluttered; and a lady's veil hung. yellow awnings trembled. the speed of the morning traffic slackened, and single carts rattled carelessly down half-empty streets. in norfolk, of which richard dalloway was half thinking, a soft warm wind blew back the petals; confused the waters; ruffled the flowering grasses. haymakers, who had pitched beneath hedges to sleep away the morning toil, parted curtains of green blades; moved trembling globes of cow parsley to see the sky; the blue, the steadfast, the blazing summer sky.
indeed, he was collecting evidence of their malpractices; and those costermongers, prostitutes, good lord, the fault wasn't in them, nor in young men either, but in our detestable social system and so forth; all of which he considered, could be seen considering, grey, dogged, dapper, clean as he walked across the park to tell his wife that he loved her.
... because it is a thousand pities never to say what one feels ...
i resign, the evening seemed to say, as it paled and faded above the battlements and prominences, moulded, pointed, of hotel, flat, and block of shops, i fade, she was beginning, i disappear, but london would have none of it, and rushed her bayonets into the sky, pinioned her, constrained her to partnership in her revelry.
somehow it was her disaster - her disgrace. it was her punishment to see sink and disappear here a man, there a woman, in this profound darkness, and she forced to stand there in her evening dress. she had schemed; she had pilfered. she was never wholly admirable.