Saturday, October 22, 2005

silenzio



se ci fosse un po' più di silenzio, se tutti facessimo un po' più di silenzio, forse qualcosa potremmo capire. - federico fellini

down down: dada

Não era pra ter me beijado, disse olhando feio pro velho. Não olha pra mim. Pára de olhar pra mim pelado, porra. Já tá na hora de você ir embora. Lá fora fazia chuva fina e o edifício Itália derretia chumbo. O piso de taco se azulava com a tempestade e São Paulo tinha um pouco de dourado no cinza da tarde. Já te falei pra sair. Por que fica aí olhando? Então o velho perguntou, Está certo o dinheiro? Falta alguma coisa?

Tá certo, tchau, e apontou pra porta. O velho demorava pra se vestir. Ainda estava de cuecas e acabara de pôr a camiseta. Queria desculpa pra continuar ali, suspenso naquele décimo sétimo andar. Tirou mais cem reais da carteira e pôs sobre o monte de notas em cima do criado mudo. Olha, te dei mais um pouco. O menino se impacientou, Já falei que era pra cair fora. Não precisa mais nada. E pára de olhar pra mim, disse.

Tinha vinte anos, cara de moleque, magro, nenhum pêlo no corpo. Continuava nu. A pele pálida refletia a cor da noite mal filtrada pelo vidro sujo. O velho então vestiu a camisa, mas não abotoou. Chegou perto, pôs a mão no pescoço do menino e tentou outro beijo. Então o rapaz lhe acertou a cabeça com um vaso. A única rosa que sobrevivia na água turva escorregou longe pelo assoalho junto com os cacos de vidro e algumas gotas de sangue. A camisa branca do velho se tingia de vermelho e lá fora as estrelas paulistanas acendiam.

Tá louco? Quer me matar, gritou o velho com a mão na nuca. Caiu sentado e se encostou contra a parede. Dói muito, me ajuda, pediu. Já era pra você ter ido embora, disse chutando os sapatos do velho pra que ele os calçasse. Andava descalço sobre os cacos de vidro. Ainda tinha na mão o que sobrou do vaso. Foi até o velho e lhe chutou a canela, Anda logo. De repente, o homem ferido levantou e jogou o moleque contra a parede. Escuta aqui, eu te paguei bem e você quase me matou.

Eu sou um objeto caro, disse encostando o vidro na garganta do velho que não largava seus ombros. Eu sou muito caro, afundava devagar no pescoço dele. Pra você fiz promoção e ainda tem sorte que eu não te matei. Não me custa nada enfiar isso até a goela e te deixar aí sangrando.

Não vai fazer besteira, disse o velho. Eu só queria te dar um beijo.

Isso não tá no programa. Cai fora. O vidro entrou um pouco na pele e escorreu uma gota de sangue. Manchou de vermelho a gola da camiseta branca do velho. A cena se refletia naquele calor invernal e frio infernal de poucos metros. Lino cobrira uma das paredes com uma chapa de vidro espelhado encontrado numa fábrica de gelo. Desenhara os traços de um coração com as quatro câmaras, átrios e ventrículos, no lugar onde costumava aparecer sua cara. O órgão parecia pulsar com cada centímetro da pele do velho que o vidro na mão dele cortava. Fazia um silêncio de engrenagens distantes. Depois passos rápidos.

Sofia gostava de ser tempestade. Entrara sem bater e empurrara a porta com as unhas. Morangos e gasolina, ela disse ao moer com os sapatos os cacos do vaso. Tua casa cheira a morangos e gasolina, e desse jeito você vai morrer. Caminhou indiferente pelo cenário. Notou o incômodo da situação nada insólita nos olhos do velho. Normal que Lino tivesse algo pontiagudo cravado em garganta alheia. E a voz dela cavava na pele dele como agulha de vitrola roçando vinil. Hoje era dia pra ter asas, disse chutando os jornais velhos no chão.

O velho olhou perplexo. E ela leve de vida se encostou na parede entre asas cenográficas como as penas de Lino. Estava ali alada com os olhos ofegantes. Era escritora. Respirava com as pupilas para que os dedos continuassem a garranchar papéis com a mesma febre. De vez em quando espancava uma Olivetti. Perdera as penas no combate. E esperava o fim da batalha.

Lino deu um empurrão e o velho largou. Andou torto até o corredor e saiu descalço com a mão na nuca. Então o menino chutou pra fora os sapatos sujos de sangue e bateu a porta.

Trovão acendeu a noite e o céu começou a desabar sobre a cidade. A sala ficava azul de chuva. Pendia do teto uma única lâmpada queimada. Teias de aranha enforcavam o fio solitário sem eletricidade. Sobrou no chão um vermelho de sangue tímido, o brilho difuso dos cacos e a rosa mutilada nas sobras de vaso.

Ela sorria serena. Olhou pra baixo. Olhou pra cara dele. Mastigava feliz a imobilidade pétrea das asas e o peso ensurdecedor de todo esse sonho. Nada importava. Hoje era seu dia de ter asas. E deitou a cabeça pra trás no banho azul marinho daquela hora paulistana.

Lino sentou pelado no colchão. Limpou as mãos sujas na parede e apoiou os cotovelos nos joelhos. Contou o dinheiro. Viu que dava pra pagar parte do aluguel. Com mais dois programas completava a cifra e comprava mais material. Abaixou a cabeça e ouviu o batuque da chuva. O motor d’água afogava lá embaixo o forró dos nordestinos, entupia os bueiros e emporcalhava as calçadas com lama ácida.

Não devia fazer isso, ele disse. Você não pode entrar desse jeito aqui. Tem horas que eu não quero te ver, continuou. Eu não me surpreendo com nada. Você sabe disso. Não te preocupa. E sem discurso, que você não tem mais direitos que eu. Ou ainda acha que dá pra ter privacidade aqui, ela perguntou mostrando os dentes brancos entre os lábios roxos. Não é isso, ele concluiu resignado.

Esfregava os cabelos enrolados na parede. Ainda tinham cheiro do velho e fumaça. Deixou cair as pernas, esticou os pés até encostar no chão e sentir os cacos de vidro. Tinha uma preguiça imensa. Balançava de leve a cabeça pra um lado e pro outro.

Quando a gente não tem uma maçã pra morder, a noite parece mais longa, ela disse. Eu também tô com fome, concordou. Não engasga com esse pó, perguntou Sofia. Não faz nada. Minha garganta vive anestesiada desde o primeiro cacete, ele declarou. E esse aí? Por que a briga, ela queria saber. Quis me beijar. Você sabe que eu detesto beijo. Ela descalçou as sandálias e baixou a cabeça, É.

Lino levantou pesado. A chuva desenhava trilhos aquáticos na barriga dele. Sentia os ossos ranger naquela fúria noturna. Odiava o tesão, tanto o seu quanto o dos outros. Não gostava da fraqueza que vem com toda demonstração de desejo. Não gostava do trabalho manual, da masturbação à sucção de velhos. Detestava querer qualquer coisa. Cedeu o colchão a Sofia. Dorme, disse.

Ela abandonou as asas e tirou as roupas. Deitou pelada e puxou uma das mãos dele pra que deitasse também. Lino deitou no chão em cima dos jornais, cacos, pétalas e manchas. Encolheu um pouco as pernas e contemplou a beleza atroz da lâmpada sozinha no teto rachado. Apoiou a cabeça de caracóis na barriga diminuta dela. A medida era mera convenção.

Sofia lia as manchetes velhas que contornavam o corpo adormecido dele. Escândalos e catástrofes ninavam aquela balada sonífera. E Lino inconsciente ficava de pau duro. Ela se sentia obrigada a reconhecer que tudo aquilo, dos jornais à rosa despedaçada e a ereção involuntária de um perdido, tinha um fascínio indelével.

Ele dormia e ela tinha sede de um leite preto ou de tinta branca. Queria a transfusão. Pensou em eliminar a brancura látea dele com a injeção de litros negros de pigmento em suas veias, começando pelo pescoço. Pensou na beleza do experimento, imaginou um novo espécime listado. Isso porque ela era negra e ele alvo da brancura mais inclemente. Continuava a sonhar duro.

Ela levantou e escreveu linhas parcas à luz de sombra. Era pra não esquecer nenhum detalhe nem perder o fio do massacre. Prometera a si mesma um rebanho novo de idéias, mesmo com cortes. E já matara todos seus animais de estimação elétrica. Sentia um sono afogado, alagado de um sufoco alcoólico. Dormiu minutos longos nos jornais ao lado dele. Não se tocaram durante a noite.

Acordaram com o sol queimando a nuca. Os raios fortes atravessavam o negrume da fuligem e cozinhavam a sala. Não passava das oito da manhã. Lino vivia numa kitchenette do centro. Eram 26 metros quadrados. Tinha uma área isolada para a ducha e o vaso sanitário. A cozinha era um fogareiro de acampamento alimentado por um pequeno botijão de gás. E no calor da cidade tudo esquentava sozinho.

Os cacos de vidro pareciam derreter na letargia solitária; do sangue restarão só manchas amarelas. Ele olhava pro teto. Ela fitava algum ponto de fuga invisível. A luz do dia mostrava a infiltração e as rachaduras da casa, dele e dela.

Lino buscou sossego no diâmetro diminuto do fio d’água do chuveiro. Não esquentava e o frio era alívio nas manhãs de pó. Gostava de olhar pra cima e ver a água cair. Abria a boca pra enxaguar fora o sabor das cinzas e rugas. Puxava pra trás os cabelos e deixava lavar em volta dos olhos. Precisava do tempo ali. Tardar-se no banho dilatava o espaço físico. Assim a vida cansava menos no acordar com buzinas e pássaros elétricos. Cada passo no seu décimo sétimo andar participava da orquestra de sons e ruídos dos outros dezesseis pisos, a marcha das formigas das ruas do centro e o pulsar dos trens da linha vermelha. E vinham também as rodas no abraço oleoso do asfalto e a fumaça cinza colorida que pintava os pombos da praça da Sé. Brincou de ter lágrimas.

Ele saiu da ducha espalhando gotas de cristal pelo piso esturricado. Ela continuava imóvel, digerindo meio mundo com olhos aspiradores. Tinha uma mão atrás da cabeça e outra apoiada na barriga. Abria e fechava a mão pra acariciar com as unhas aquela gravidez estéril de um futuro não preenchido. Era magra, côncava e escura.

Lino continuava molhado. Estava de pé e deixou suas gotas escorregarem pra cima dela pra chamar atenção. Ela olhou de baixo pra cima pros poucos pelos banhados dele. Vista daquele ângulo, a água que se prendia a ele parecia um mel prateado, gelatina gomosa. E ele cintilava de forma eletromagnética. Ela fez carinho na perna esquerda dele com seu pé direito. Agradeceu a sensação fria em contraste com seu calor grosso e central. Os dois se odiavam pela manhã. Era melhor talhar toda palavra e movimento.

Eu andei mal, Lino. Mas hoje nem seu espetáculo me tira do sério. Tenho coisas belas na cabeça, ela disse. Levantou e foi abrir a janela deixando o sol e a fúria da rua entrar. Eu não tenho tempo, desculpa, disse Lino ao secar os cabelos. Nem eu, ela disse. A gente precisa de um relógio de cordas vocais, concluiu Sofia. Se a gente conseguir medir os berros e gritos do tempo, você pode desenhar a alma dessa guerra e eu mato a minha fome. Lino olhou pra São Paulo e viu que ainda era cedo demais pra canibalismo, mesmo com todo o sol laranja.

A luz pesada focava pra baixo a visão dela. Tem sorte que faz calor. Esse vidro vai derreter e parar de te cortar os pés, ela disse desgrudando os olhos do chão cinco minutos depois. Não chorava porque estava seca. Mas por que aquela rosa? Recolheu do chão o talo com as pétalas esmagadas que só então reconhecera como rosa. Sobrou do quê, perguntou. Não foi nada, ele disse. Era uma flor que tava aí naquele vaso. Ela fez que não importava com os ombros, Vem com os morangos e gasolina.

Cismava com os cheiros da casa dele. Pra ela os cacos, manchas e pétalas eram objeto cênico da obra dramática sempre em cartaz na vida de Lino. Porque era artista buscava viver num cenário montado para abrigar certa inspiração fugidia. Uma vez ele construiu uma rampa de madeira que acabava na janela. Pintou de um rosa forte e cobriu de mel. Esperava ver formigas marchando ao precipício num mar viscoso. Não deu certo e a estrutura foi removida semanas depois, nunca livre das formigas e do mel. Sofia refletia sobre o mesmo fim trágico dos cacos quando viu a flor.

Me diz por que tinha uma rosa nesse vaso, pediu pra saber onde se encaixava na encenação o objeto insólito. Deixaram aí dia desses, respondeu seco. Quem? Ela olhava firme pra ele. Não sei. Um dos caras que vêm aí. Ela queria saber por quê. Ele achou que ia ser bonito, ele disse pra fazer que ela se calasse. Ela olhou cansada, perdendo a fome.

Deixou cair o talo depenado e continuou de pé perto da janela. O sol da manhã dava um verniz roxo ao negrume do corpo dela. Agora vestia só umas calças folgadas e lá do alto estudava a cidade.

Sabe que tô escrevendo um livro, disse ansiosa. Não. Por que, ele perguntou. Como por quê? É uma história que eu sonhei dia desses. Foi um sonho estranho porque eu me via só de costas. Eu me via andar pela cidade. Foi tudo aqui. Eu passava ali pelo terminal e continuava andando, andando. Mas eu chegava numa praia e sentava ali. Olhava o mar. No sonho era como se tivesse mar aqui. E eu tinha uma tatuagem nas costas. Não sei. Até que no sonho era bonita. Era o mapa de algum lugar. O meu livro é sobre esse lugar. Todo mundo tem um nome tatuado nas costas. Mas nem todos sabem onde é. É a história desse lugar.

Ele vestiu uma regata branca e calçou chinelos. Vou sair. Vem? Ela olhou triste. Vestiu-se na mecanicidade de uma foto-copiadora. Tá. Os dois saíram subterrâneos do apartamento. O corredor úmido se estendia por portas demais e luz de menos. O som era do couro liso dos sapatos dela e o arrastar dos pés dele. Chamaram o elevador. Quando acionavam as engrenagens, pestanejava a luz do corredor. Ouviam o ronco leve da corrente elétrica. Subiu a gaiola rendada. Fizeram em silêncio a viagem de dezessete andares. Ela deu um passo pra perto dele. Queria um abraço. Queria. Ele saiu do lugar e assistiu ao encontro dela com a parede metálica.

Que pena que eu não sou azul, ela concluiu gelada como a chapa de aço. Debaixo dessa luz eu ia ser linda refletida nessa parede fosca. Ele olhou pra ela e fez cara de pensar. Olhou pros pés. Viu que os chinelos estavam gastos. Voltou o olhar pra ela. Olhou pro seu ombro direito. Olhou pra ela. Você tem razão. Azul que nem a luz das bancas de jornal da Paulista, disse. Eu não consideraria outro azul, meu amor, ela disse pra acabar o discurso. Quer ver outros elevadores, ele perguntou. Pode ser, ela fez que sim com a cabeça.

A Consolação estava congestionada. Passaram entre os carros com a preguiça medrosa do meio dia. Os escapamentos faziam tremer o asfalto no calor cinzento. O sol se prendia nos alicerces do centro e eles derretiam. O corpo ficava como borracha, como a suspensão dos ônibus. Sofia escorregava as mãos pelos capôs multicor. Lino desenhava na alma os sussurros das máquinas e seguia febril as pernas depenadas dela. Assim cruzavam as faixas. O trânsito não ameaçava movimento. Meninos vendiam balas, lavavam pára-brisas e contavam histórias. Motoqueiros deslizavam na inércia dali. Farol vermelho, verde, amarelo, vermelho, verde, amarelo. O trânsito não ameaçava movimento. Assim cruzavam as faixas.

Pra onde a gente vai, ela queria saber. Vou te mostrar uma coisa. Você quer ou não quer, disse pronto. Me leva, ela disse. Ainda tenho vontade das minhas asas. Tenho saudades delas. Elas são que nem no meu sonho tatuado. Estão aí nas costas. Como se tivessem sido amputadas, seguia perdida. Andavam rápido. Lino guiava. Atravessavam o vale, ignoravam os vendedores. Os profetas da tarde plasmavam discursos. Lino queria logo o destino. Sofia sonhava as asas da manhã, penas de morango e gasolina. No sol, ela se via a formiga precipitada da janela, lenta num caminho viscoso.

Andavam no circo do centro em direção ao viaduto do Chá. Lino conhecia um elevador vermelho perto dali. Ficava naquele hotel onde os convidados do show de calouros se hospedavam. Na época da brilhantina paulistana, movimento de transmissões ao vivo e o Procópio Ferreira, era o elevador vermelho de luz quente que levava os convidados pra cima e pra baixo no velho Othon. Lino queria que a Sofia viajasse ali. Pra calar a boca dela ou arrancar uma lágrima. Ele achava que tinha razão e estava triste por ter andado muito devagar até agora.

O saguão escuro desligava o sol da rua. A madeira dos gabinetes refletia a infiltração rugosa de anos vividos. Uma lâmpada só castrava o olhar para a cara achatada de barba mal feita do homem da recepção. A trilha sonora eram os ecos distantes de uma partida de futebol mal estampada numa tela três polegadas. O reflexo verde do campo iluminava frio a pequena sala.

Lino passou reto e chamou o elevador. O homem desviou o olhar do jogo por uns segundos, olhou pra ele e pra ela. Sobe, sobe. Depois a gente acerta aqui embaixo, disse. Sofia girou e entrou de costas primeiro no elevador vermelho. Encostou-se na parede de trás debaixo da lâmpada amarela. Lino fechou a porta metálica e apertou o botão que levava à cobertura. Um estalo punha em marcha a velha locomotiva de polias e contrapesos.

Ainda estou procurando minhas mulheres amarelas, ele disse. Pensava que só uma era amarela e que a outra era azul, ela disse. Não. Agora o fundo vai ser azul e as duas vão ser amarelas com vestidos roxos. Vão se beijar como dois homens se arrebentam numa briga de rua, explicou. Assim é melhor, ela disse. Não arrisca perder a fúria de duas galinhas de briga, continuou.

O elevador parou. Chegara ao fim do curto percurso de onze andares. A porta abriu ruidosa e Lino desfez os fechos pra sair. O corredor era escuro, decrépito. Um tapete vermelho desbotado e mofado adornava o chão de madeira infiltrada. As portas eram de um verde pálido como o campo de futebol do porteiro. Todas carcomidas nos cantos. As maçanetas de latão oxidado perderam a função. Nenhuma fechadura resistira e o hotel não recebia mais hóspedes. Vinham só turistas do acaso, legiões desencantadas.

Sofia saiu na frente. Caminhava oscilante, direita esquerda, numa cadência leve. Dançava a valsa dos cafés-concerto enegrecida de alcatrão. Olhava porta a porta os números tortos, a sorte ou azar dos fantasmas deixados pra trás e damas com estojos de maquiagem. Sentia roncar no estômago aquele vazio dessas horas mortas e percebeu as saudades intensas que tinha daquela época que nunca conhecera.

Lino cavalgava sua indiferença. Era melhor não se emocionar. A questão não era o último piso. Era o trajeto, a estrada vertical da jaula vermelha. Ele gostava de olhar os espaços entre os pisos, as chapas de concreto maciço que entremeavam vidas inteiras, visitas notáveis e anônimas. Pensava em todo o som que morava ali, todo o ódio, amor e insatisfação cimentados. Toda a inutilidade dos impulsos era objeto do seu estudo empírico.

Ela chegara ao fim do corredor ainda com sede. Viu que uma escada estreita levava a um alçapão no teto. Subiu. Forçou a porta e a dobradiça cedeu com o cadeado. Fez uma chuva de pó e furou a barriga do mundo de cima. A luz do meio dia rolou grossa e angular pra dentro do corredor. Lino foi atrás.

Os dois saíram subterrâneos, expostos ao sol forte. O som era dos pássaros elétricos, aviões e helicópteros e as ondas de rádio cíclicas, marítimas. Sofia sentiu seus globos oculares captarem o sinal forte da telefonia celular e as ordens dos satélites. Lino bocejou e sentia um leve ardor nos pés.

O chão era de pedras miúdas batidas. O topo do prédio era asfaltado com essa casca granular fosca. O cinza era o mesmo cinza padrão de São Paulo. Um vermelho ou outro das embalagens de carvão e argamassa sobraram. Ali era um prostíbulo arquitetônico esquecido. Em cima, um outdoor com alguma promessa físico-monetária ou discurso retro-político. Alternava entre um e outro de acordo com o regime lunar.

Por que a gente não vem morar aqui, perguntou Sofia. Faz sol demais, ele disse. E eu não tenho vontade de morar com você, terminou. Não é por você. É por mim, ela disse. Faz o favor de estar perto até eu arrancar de trás dos teus olhos o que eu preciso, continuou. É que eu tô quase chegando ao fim contigo, ele disse.

A gente podia plantar grama aqui. Falta um pouco de verde, ela continuou sem dar caso às frases dele. Só se for grama azul, ele disse. Detesto esse teu verde, continuou. Eu também não te amo, ela disse. É uma questão de acertar obturadores, explicou. Eu quero o teu vazio branco perto do meu preto cheio pra fazer imagens mais retilíneas. Estavam em freqüências distintas iguais. Cruzavam agudos e obtusos tortuosos descompassados, mas nunca paralelos.

Ela sentou encostada num ferro enferrujado e retorcido. Ele entendeu pelo olhar branco dela que era pra tirar a camisa. Cedeu porque não podia ignorar pedidos oculares. Ela levantou e pôs as unhas de esmalte branco em volta do umbigo dele. Cravava com força, arranhava rosa. Com os caninos cavalares mordeu os poucos pelos do queixo dele, forte. Ele levou a mão esquerda calejada ao pescoço de graxa dela. Começou a enforcar de leve. Sentia pela mudança na respiração e as alterações na pele do pescoço que ela começava a morrer. Enquanto ela mordia com mais força o queixo dele.

Morderam e enforcaram num longo abraço. O queixo dele sangrava e a cara dela já perdera o negrume. Ela virava branca como os olhos e dentes. Ele, vermelho. Afastaram-se um do outro. Ela recuperava o fôlego e a cor. Ele limpou o sangue da cara. Olhou pra dentro dos olhos dela. Ela devolveu na mesma intensidade. Começaram a rir. Os corpos tremiam retorcidos nessa reação involuntária. Riam do ridículo. Sorriam firmes e fortes. Riam um do outro. Estrepitosa, engraxada risada. Riram.

Você não é a mulher da minha vida, ele disse entre risos sem fôlego. Eu te amo com todo o ódio que cabe no meu coração, meu amor, ela respondeu. Então estamos de acordo, ele concluiu. Só faltam minhas asas, ela disse. No final, é questão de ver quem morre primeiro, continuou sorrindo. Quando, ele perguntou. Quando o primeiro de nós falar que tá na hora, ela respondeu.

Você está preparada pra dizer que a coisa mais linda do mundo é quando rolam as nuvens por cima desse sol às quatro da tarde, ele perguntou. Quando começa aquela garoa logo chuva e todo mundo aparece lá embaixo saindo dos buracos com guarda-chuvas coloridos, pretos e brancos, continuou. Sim, ela respondeu. A coisa mais linda do mundo é nosso asfalto de guarda-chuvas e o assalto das nuvens, continuou. Então já não precisamos de asas falsas, ele concluiu. Às quatro, ela disse.

Dormiram lado a lado, separados num sonho único de arranha-céus cor de abóbora. A barriga preta dela subia e descia no mesmo ritmo que o coração branco dele bombeava. Lentíssimo, quase morte. Seguia o intervalo de cada trem que deslizaria lá embaixo, bem baixo subterrâneo, no calor da Sé. Sete segundos e uma batida. Sete segundos e um parto. Sete segundos de formigas. Sete guarda-chuvas por segundo que brotavam do asfalto azul da tarde.

Às quatro da tarde, as nuvens cobriram o céu. O cinza da hora despertou os dois da transe onírica. Ela levantou primeiro e acordou Lino com um chute leve nas costelas. Ele levantou. Olharam um pro outro na cumplicidade de uma antena parabólica. Agora, disseram juntos. Pularam de lá de cima. Chegaram ao chão sem voar no mesmo segundo.

Próximo à entrada da estação Anhangabaú apareceram duas manchas enormes, uma branca outra preta. O contraste absoluto provocava quase cegueira nos transeuntes. Só manchas de só cores que cobriam forte o asfalto. Motoristas desatentos amassavam pombos perdidos, criando manchas vermelhas de sangue e penas cinzas em volta do negro e branco. E as penas de duas cartas de baralho se espalharam pelas ruas do centro.

Ninguém teve coragem de fazer arroz e feijão aquele dia. Os pratos feitos dos restaurantes por quilo do fim da Augusta tiveram um sabor azedo de pimenta e chuva ácida.

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